domingo, 15 de agosto de 2010

Dos sentidos e dos abraços


Não gostaria de contar-lhe esta estória nem de levá-la pela mão como a uma criança indefesa. Preferiria que o semáforo fosse menos econômico com seu troca-troca de cores e permitisse que você chegasse cedo só para me dar mais algum tempo e finalmente realizar aquele sonho, lembra? Na janela sobre a cidade, como no filme “império dos sentidos”, claro que poderíamos fazê-lo a qualquer hora e não necessariamente em um dia sem trânsito ou de semáforos eternamente abertos para você, mas queria tanto que fosse hoje e que depois você seguisse sozinha e voltasse sem avisos, me surpreendesse falando sozinho ou dançando no escuro, imitando Gene Kelly sem correr o risco de ser flagrado sem o sorriso e sem a malícia. Gostaria das coisas mais simples, quem sabe nem aqui, poderia ser na rua, ao acaso, um esbarrão na esquina, uma consulta sobre o melhor caminho ou a conclusão de que não existem caminhos, um gesto educado permitindo que você pegasse o táxi e a distância apagando a possibilidade de um telefonema, quem sabe um pedido idêntico no balcão da padaria e então os olhares, os risos, a aproximação. A escolha do filme (os detalhes do “império”, ou ainda aquela cisma com o “último tango”, tem também a culinária de “9 E MEIA semanas”), as indecisões sobre a mesa e a roupa de cama, a cor da cortina, bobagens tão imensas e aprazíveis. Mas, quase nada é como desejamos e então, tenho que convencê-la, persuadi-la, enganar-me pensando que a conquistei. De qualquer modo, quando chegar, entre direto, não bata, estarei acordado admirando as luzes da cidade, indefeso, de costas, pronto para receber o teu abraço.

domingo, 1 de agosto de 2010

Um mar


Não era bem assim que o mar teria se apresentado;
tanta tralha na espuma e tantos pés calçados a lhe pisotear a alma.
De qualquer modo, foi assim que o vi pela primeira vez.
Também foi a última.
Alguns dias depois recuou para o fundo.
Para o fundo dos olhos.
Olhos de quem chora um mar.

sábado, 17 de julho de 2010

Terminações nervosas e a dor em prontidão

O cigarro queima entre os dedos da mão direita, enquanto tudo se perde no vazio que olhas.
Além do vazio, vago.
Lá os cantores são charmosos e leem Jack Kerouak e também se comovem com as putinhas tenras que vez ou outra pedem uma canção.
E se faço poesia vagas ou acotovelo o balcão
Na busca estúpida de farelos e inspiração
É porque o vazio é ainda a saída para encontrá-la de lá prá cá
Falando sozinha na vaga da minha poesia enamorada que puta alguma mereceria, não àquela hora.


De repente o copeiro invade o vazio (o que a irrita mais que surpreende) e pergunta se quer mais alguma coisa. Você o olha e aturdida diz alguma coisa no lugar da verdade e só depois descobre que pedira um conhaque. Deixa o cigarro no cinzeiro e apanha (com a mesma mão direita de tantos outros gestos, inclusive aquele de enfiar-se pelo cabelo jogando-o para trás) o copo de conhaque. Fica olhando para ele algum tempo como que procurando o vazio de antes, mas o que encontra são tipos miseráveis desfocados que te observam impunemente. Bebe o conhaque de um gole só, dá uma última tragada e pede a conta. Levanta tão lentamente quanto permita o equilíbrio desse gesto e dá o primeiro passo. Confusa, olhas ao redor, quer muito que as paredes se abram em caminhos bem iluminados, de preferência em meio à algazarra de colegiais adolescentes efervescendo ao sol de suas histerias, mas o caminho é outro, cheio de esbarrões e cantadas sujas. Já à rua, você nem percebe que traz o copo e que não há um gole possível ainda repousando no fundo. Volta-se e o atira contra a parede. Todos olham e todos sorriem carrancas podres. O copeiro diz alguma coisa que não te interessa e mais uma vez toma o rumo de um lugar que não existe. Os vazios são preenchidos como que numa alegoria que aos poucos se desenha; ganha algumas cores tímidas e poucos sons naturais. Ouves a notícia de que alguém quebrara um copo, de que alguém sozinha num bar sujo do centro da cidade quebrara um copo contra a parede e que por isso estava sendo ameaçada. Ao mesmo tempo você se desloca entre os tempos de tantos outros passantes sem tempo nenhum para te ver passar por eles; fantasmas de uma mesma caminhada. Você pergunta quanto custa o copo e o rapaz á sua frente não entende nada, desvia e some por um mundo de imprecisões. Você nota que não há nenhum bar ao seu redor e que as vozes que ouves anunciam toda a sorte de impropérios. Não se trata de alucinação, não bebera para tanto, mas te parece tão claro que os vazios agora pareçam monstros prontos a transformá-la num banquete. Tocam seu corpo e tentam puxá-la para dentro de um emaranhado de estórias que nunca ouvira antes, mas que agora são digitadas tão velozmente quanto o copeiro que te aparece com a conta do copo, a conta de um mísero copo. Pois que a vida transformada num copo que se espatifara contra a parede descascada de um bar imundo, pois que transformada em quase nada, pois que a verdade também é uma estória e então, minha cara, que tal atravessarmos juntos a porra dessa avenida e depois cada um tomar seu rumo; eu e as minhas investidas vazias, você e os seus horizontes cada vez mais em pedaços, pois cacos de um mundo pelo chão, que tal, hein?


sábado, 3 de julho de 2010

CONDICIONAIS

Precisaria mesmo de um corte mais profundo, um instante mais alucinado que trouxesse o alento de um antigo sentimento ou mesmo os odores daquela relação. Precisaria mesmo de um corpo em lumes, enlouquecido de porta em porta, espiando por entre a troca de luzes outras presenças imprecisas, cujos nomes inaudíveis se faziam sussurrar. Precisaria mesmo de outra morte mais definitiva, de um rio ainda mais enfurecido que me afogasse para sempre dentro das cenas escolhidas, que me mantivesse pétreo incapaz de gesto, vidente destas alucinações enquanto algum dia passasse lá fora e me acenasse um adeus técnico, calculadamente gelado. Quando não mais precisasse de nenhuma emoção, retribuiria o aceno e aguardaria da noite os primeiros bocejos e dormiria em paz, tão tranquilamente que não acordaria para estes dias infiltrados, úmidos, em cuja cabeceira tuas preces revolveriam meus pecados buscando-lhes uma salvação não desejada. Precisaria de um silêncio compacto e de tragadas lentas; gostaria que não me proibissem certos vícios e que me deixassem olhar, de relance que fosse, os trejeitos do teu corpo. Gostaria tanto de tantas coisas indelicadas e indizíveis, coisas como respirar de mais perto os ares de tão longe, viver dias sequer contados no calendário do seu tempo, coisas como sonhar os sonhos de um animal extinto ou acordar nas manhãs de outra civilização. Precisaria desaprender hábitos e enfiar-me de corpo e alma no vício da sua visão, gerar outras estórias e sorrir com dentes novos antigas aspirações; sim, seria tão mais necessário olhá-la por ângulos improváveis só para crê-la menos encantadora e então arrebatar-me esconjurando cada detalhe da tua silhueta. Precisaria tanto decidir-me se eu ou se outro além dessas insinuações, além dos sabores que trago vivos na saliva. Precisaria até encerrar-me em mar alto sob todos os sóis pretendidos pela vida e salgar os olhos com tanta imensidão. Até das saudades levadas em desatino como se acaso destino desta mesma improvisação que é amar-te todos os dias, eu precisaria. Precisaria concessões e finais escritos sob medida; fotografá-la de ímpeto e agressão invadindo teu quarto quando já descartado dizendo-te não as palavras que me inspiras, mas aquelas devidas. Precisaria, ao invés de uma cena qualquer, apenas pedir-te um beijo, e mesmo que eu ficasse pelo caminho, beijar-te simplesmente.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

“[...] não sei como perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem exceção, acabavam ao fim de sessenta segundos [...]”.
As pequenas memórias (p. 59)


Saramago é um dos maiores escritores de todos os tempos e de qualquer língua. Sua pátria, sua militância, sua vida são os livros que escreveu e os escreveria com a mesma genialidade fosse o seu idioma qualquer outro. Falaria de outras realidades e, muito provavelmente, de outros recantos, mas o faria com a mesma intensidade. Sua pátria escrita é um sem tempo de humanidade.

terça-feira, 8 de junho de 2010

ENTRELACES

prá você

Quando no meu sonho encontrei as gavetas vazias foi porque no seu sonho você já tinha ido embora levando todas as roupas.

Enquanto desse lado do mundo eu remexia o escuro do quarto buscando alguma lanterna entre as memórias, do seu lado tudo vinha à tona entre espumas de esperança e longos caminhos pedregosos.

A circularidade da vida nos foi carregando cada vez para mais longe, mas nem ela própria foi capaz de perceber que quanto mais longínquo dentro do circulo mais próximos ficávamos. E tão próximos que nossos sonhos se confundiam; sonhávamos os sorrisos um do outro, sonhávamos as dores e os percalços e nem mais sabíamos quem se levantava pela manhã e lavava o rosto num desencontro de visões.

Completos e desiguais temíamos que as noites nos dragassem como restos. Não éramos restos, afinal. Mesmo que não soubéssemos, a cada dia ficávamos mais próximos e tão mais perto que os sonhos passaram a fazer parte do dia já claro, dos afazeres e de uma preguiça intensa que se instalava a cada novo fim de tarde.

Ainda não sabíamos, mas não amanhecíamos mais sozinhos, nem íamos à rua sem que o guarda-chuva de um protegesse da chuva o outro; não havia como atravessar as avenidas sem que não nos déssemos às mãos. E tudo sem fazer ideia de que já íamos tão perto.

Em certas madrugadas vagávamos pela casa um do outro com medo dos sonhos e até nos encontrávamos nos copos de chá morno sem saber que os lábios nas xícaras eram os nossos; sequer pressentíamos as cores do seu batom nas minhas toalhas ou as minhas secreções nos seus lençóis. E cada vez mais próximos.

A água de um banhando o corpo do outro, as colorações dos dias de um chamejando nos gestos do outro e um sem fim de interpenetrações loucas que derrubavam objetos quando não havia nada ou ninguém, mas insistiam em escapulir do sonho e bulir no círculo que continua em si mesmo para uma eternidade de desenhos sobrepostos e, do mesmo modo, bulir a vida, essa sequência de eventos que se adicionam e que se desmancham quando a ausência de um é a falta do outro.

Se na sua realidade o presente é um sonho, saiba que na minha vida o presente foi sempre você, não um presente qualquer que sonhamos depois de meia dúzia de cervejas, mas um presente que se conjuga amando.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

POEMA CRÔNICO

ou
Pequena crônica das cores do meu amor

Nos últimos tempos amou vazio.
Deitou-se sozinho quando lhe sussurraram tolices no ouvido; desabou-se em reentrâncias irrespiráveis e cegas, mas antes,
antes amara com tanta avidez que construíra um mundo de cores arrebatadoras.
Vermelhos tão violentos que era sangue qualquer beijo; amarelos magnânimos que sequer Van Gogh imaginaria; azuis só possíveis do espaço, pois azuis intermináveis; verdes frondosos, saborosos, embalados pelo branco de uma brisa fria.

Também amara de um jeito tão desconcertante que as horas se fizeram de uma brevidade cremosa para depois precipitar-se orvalhada no seu púbis contraído.
E amara descalço sobre brasas e tão alto que nenhum Everest bastaria;
amara tão nevralgicamente que se tornara crônica a dor de um bem-querer despetalado.

Amara convulsa e tristemente através de velhos poemas amarelecidos de tempo e lágrimas, mas amara, sobretudo, com os olhos bem abertos de tão profundo que fora o mistério.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

TODO RETRATO É O MESMO

...e por ser assim, não espanto as teias vivas e pressinto o tanto de tempo que se aproxima; retratos esmaecidos sob o pó vigilante testemunham a busca e quando tocados impregnam o ambiente não com o mofo, mas com a verdade dos seus traços. Uns sorriem quase piedosos, outros se escondem e procuram as portas, as mesmas que deste lado da vida se mantém entreabertas numa espera de dias e brisas. Quem por aqui deixou seus dizeres e seus gestos ensaiados, fixou-se nas sombras, no jogo de luzes de um lusco-fusco prenhe de invernos desbotados; fixou-se como em um sonho do qual não nos livramos pela manhã, impregnou-se como um adeus que é sempre outro se repetindo no retrato que antes era um sorriso seu. Depois de tudo, ainda uma sonata e uns poucos minutos entre a certeza dos seus olhos mais ou menos castanhos e a leveza dos nossos pecados certamente doces. Depois de tudo, as teias já não se comovem com meus gestos combalidos e escondem nossas passagens secretas, tudo então é distância, solidão e canções do Djavan, tudo é uma questão de burlar as leis da natureza e flutuar pelo sótão como quem procura suas pegadas ou chafurdar na embriaguez dos seus cheiros cheios de mim e de quem mais? Entre todos os retratos que não mais alcanço, o seu é o que mais se insinua, mesmo que dele reste apenas a moldura e os motivos que o arremessem contra a parede, mesmo que dele restem as teias e o tempo exato de contar-lhe a estória.

domingo, 18 de abril de 2010

Promessa

Juro que tu serias minha vida, déjà vu perpetuado por todos os meus poros e instantes e meu instante absoluto, cósmico, um instante diabólico tatuado no plexo, um instante divino em você e na criação, nos cuidados com as plantas, durante minhas expedições lunares ou minhas audições malucas de Creedence Clearwater Revival e mesmo que o desatino do fim da vida me levasse ao espelho e fosse um estranho que me olhasse, mesmo assim este estranho perguntaria de ti, e de ti falaria a noite toda, contaria nossas estórias, lembraria nossas andanças por ruas e becos e matas, nossos pés tão ágeis transpondo o limo das pedras e depois acarinhando um ao outro, e mesmo que de mim já não fizesse a mínima idéia, de ti lembraria todos os detalhes. Hoje e por tantas outras vidas, lembrar de ti não seria nenhuma ave sem rumo, mas uma revoada migrando para teus confins e teus confins estariam certamente brilhando no espelho quando eu me olhasse procurando por ti.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Viagem astral

Há um desdobramento que nunca entendo; uma palavra, uma frase que se insinua nua quando visto outras interpretações e lhe cubro de significados tórridos. Sinto mesmo o sabor das frutas que dividimos quando me dizes sobre a partida, sobre a ida para um nunca mais perto de mim e insisto que o sabor é outro, que as maçãs estão maduras e que o pomar é tão aqui, tão próximo do espaço físico sideral que ocupas na minha vida. Vivi só enquanto você viveu em mim e foi tão intenso que deixei um pouco de vida para estes dias de hoje, dias de pomares distantes, dias quentes que não entendo e só faço cumprir.

domingo, 21 de março de 2010

Sonhariam os hippies nos quintais?

Então saíamos por um mundo aquariano com sorrisos abertos e passos incertos. Coreografávamos nossos rumos com a estupefação dos vizinhos e os jardins em tons trepidantes pareciam florir em nossos olhos de um abrir e fechar de rosas e açucenas, margaridas e malvas tão pequenas surgidas sempre que nos percebiam sorrir. Era um cortejo entre alucinado e carnavalesco, e mesmo que um e outro se confundissem alucinávamos transeuntes e voávamos por sobre os temporais avessos a estes feudos matinais. Preferíamos a profundidade das madrugadas fiadas sorvidas inteiras na esquina das meninas e dos meninos queridos, queríamos mesmo a cachaça barata durante as horas mais fartas quem sabe uma letargia mais franca, um sentimento de que a morte espreitasse dos guetos como é costume entre os mais queridos e desassistidos e corríamos dali como quem corre para os braços de um grande amor idealizado num passar de páginas mal digeridas, num ouvir de boleros, sambas e blues malemolentes já que não há vida possível sem o requebro dos quadris.



sexta-feira, 12 de março de 2010

Tirinhas de jornal e reencontros

Glauco Villas-Boas (10/03/1957 - 12/03/2010)

Conheci um sujeito há muito tempo que não devia nada ao “Geraldão”, aliás, não me surpreenderia cruzar o Glauco qualquer dia destes e descobrir que ele também o conhecera e que lhe servira de inspiração. Também conheci uma “Dona Marta”, lá nos meus tempos de bancário. Certa feita, assediado em pleno almoxarifado, perguntei se conhecera o Glauco, o cartunista. Não, não fazia ideia de quem se tratava. Expliquei que ela lembrava, e muito, uma personagem criada por ele, assim, digamos, vibrante.

Nunca cruzei com o Glauco. Estava até conformado, eu morando em Aracaju, ele em Osasco, mas não completamente descartado, afinal, em tempos de redes virtuais e promoções de companhias aéreas, ir prá lá ou vir prá cá fica cada vez mais fácil.

Ainda outro dia, desbravando um velho baú de “recuerdos”, encontrei algumas tiras do Glauco recortadas do jornal. Senti vontade de encontrá-lo e, finalmente, lhe perguntar quem lhe servira de inspiração. Mas não o procurei na internet e sequer cogitei pegar um voo pra Sampa.

Agora não importa. Conheci mesmo o “Geraldão” e a “Dona Marta” e, mais recentemente, até alguns “casais neuras”. Quem sabe um dia, antes do fim da estória, os reencontre por aí juntos com o Glauco para algumas boas gargalhadas.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Todos os toques e toda a dor

Há um toque, mas não percebo. Não percebo porque em preto e branco e contra um fundo tão sem cor. Não é preto e branco, mas mesmo assim tão sem cor, desbotado. De tão desbotado me lembrei das tuas faces pela manhã depois de tanta madrugada. Tanta madrugada que o sol que tanto ardeu nos ombros nem parecia mais um sol, mas uma lâmpada sem brilho dessas de corredor de hospital antigo em cujas paredes, invariavelmente, a foto de uma enfermeira diz psiu para quem ainda continua vivo. E vida era tudo o que pedíamos antes de nos olharmos entre cautelosos e penalizados; você ainda com o corte no supercílio, eu ainda menstruada, louca pra chegar em casa e me esquecer debaixo do chuveiro. Sempre penso naquela cena do Hitchcock quando me esqueço no chuveiro. Quando o sangue escorre pelas pernas, então, nem se fala, só falta você aparecer de peruca estilo Norman Bates e faca nas mãos e acho que aí não faltaria mais nada, talvez eu devesse cortar o cabelo como o da atriz, talvez fosse melhor a gente se apressar, esse corte parece feio e pode infeccionar. Sempre que digo coisas assim você ri, você acha que tudo é porque não tem outro jeito, pergunto se tem a ver com destino e você diz que não, diz que tem a ver com as coisas que a gente faz e faz porque escolheu fazer não porque um controlador invisível mexeu os fios. Você diz que deus não existe e se existe você não gosta dele, diz que se existe é um déspota se divertindo com suas marionetes loucas. Estamos juntos há algum tempo. Tempo bastante para que saibamos dos nossos cheiros e sabores em qualquer situação, quer dizer, ainda não senti seu cheiro quando você está com medo, você sente medo, não sente? Todos nós temos medos. Eu tenho medo de barata e de cemitério a noite, também tenho medo de igrejas vazias, descobri outro dia, naquela manhã chuvosa, a gente voltava da balada e resolveu se proteger na igreja, de repente você sumiu e percebi a porta entreaberta, não tinha missa nem nada. Fiquei com medo e voltei pra chuva. Você apareceu e cantou com um resto de voz que eu vinha toda molhada e despenteada, que maravilha que coisa linda, eu o seu amor. Meu irmão tem medo de você e da maioria dos caras que saem comigo, meu pai tinha medo do vizinho, jurava que ele era maluco, ok, eu sei por quem ele era maluco. E você, tem medo do que? Notou que tudo está em preto e branco? Será que estamos sonhando? Eu sonhando com você e você sonhando comigo. Sonhamos juntos o mesmo sonho e nos cansamos tanto que é melhor a gente dar um tempo. Olha só, isso é um toque, agora sei que é. A gente espera clarear de vez e se enfia no primeiro trem. É um toque, tem alguma coisa errada, porra! Acredita. Acabei de descobrir que também tenho medo destes toques do além. Olha lá, aquela menina, que porra uma menininha tão novinha faria a essa hora no meio da rua me olhando e acenando, diz? Você não tem medo? Só pode ser um fantasma, assim sem cor e tão destacada com essas rosas tristes nas mãos e acenando e se aproximando, parece sorrir, mas chora, parece choro, mas é um sorriso tão lindo e tão feio, se aproximando tanto, e tão perto, moço, compra uma rosa prá moça, compra?

domingo, 3 de janeiro de 2010

Os Matizes da Era de Peixes


Quando descubro que todo caminho é atalho e todo corte cicatriz, atino que velocidade e contemplação são traços de um mesmo matiz, risos tímidos, pois advertidos na boca de uma gargalhada ferida, exposição tacanha capaz de esgueirar-se nas sombras de um colo gigantesco que não se diria acorde nem refrão.

Tudo tão pouco fruto e raiz esparzida, tudo folha e secura franzina, véu de posses entrecortadas e juízos de um sempre vazio, tudo é vastidão e princípio, muro e visão por entre os vãos que se destacam ocos por dentro dos olhos loucos que poucos veem como aparição.

Tudo é muito enquanto durmo sonhos de preguiça fluida, enquanto mitigo mistérios ao largo das portas e do coração, tudo tão manhã maná e manha que povoo de mim este recanto de projeções mudas, tudo tão lamento quanto perdição por fora, anavalhada em cena aberta, tudo tão pouca luz que se desfia e desafia o tempo extinguindo-se para sempre e nunca filete translúcido deparando-se só; lanterna abandonada no último instante da criação, na primeira inspiração pisciana quando então tudo é forma e vibração e os vermes principiam nas ventas seus caminhos de redenção e desvario, e tudo é correria e um abrir de cortinas tangendo restos.

Deixo o primeiro dia da sua vida, a primeira manhã da mulher gritar para dentro e acordar essa tola imortalidade. Deixo que tudo germine nos beirais e revoo junto às aves que desenham meus pequenos segredos de ninguém; espio antes as feridas ressequidas de tanto que as crianças brincam nos jardins dos pequenos deuses, aqueles que cantam enquanto criamos as horas e tantas aberrações. Movo-me inquieto e desperto outro alguém que trago em mim, alguém inventado às pressas, forjado no olho mágico que espreita, lê jornais de outro tempo e acena todos os dias como nunca mais.





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