domingo, 29 de novembro de 2009

Outra bárbara natureza


Enquanto dormes fico de um lado para o outro esperando que amanheça como de tantas outras vezes (amanheceria sem que ao menos um ruído fosse destacado do fundo sonoro de pássaros madrugadores ou mesmo que outra bárbara natureza se derramasse sobre tudo) e que saias, finalmente, as sete em ponto desafiando interlocutores BÁRBAROS. Fico cuidando da casa, de cada poro sobre o tecido do tempo, cada corte mais brusco de uma cena para outra, cada falha na pintura dos rostos que vivem nos espelhos trincados, cada grão de poeira, cada nova caricatura pelo buraco da fechadura, cada novo sentido que me faça um pouco mais fechado à vizinhança. Dormir é algo que não sei mais, então leio as notícias e te mando e-mails o dia inteiro, almoço só com as minhas circunstâncias e torno à portinhola para olhar a rua e seus MISTÉRIOS. Dentro de um deles tu inspiras homens e mulheres e só tu excitas assim os transeuntes apressados, de repente bárbaros e indóceis aos tropeções buscando ávidos teu rebolado SOB A GAROA, teus passos apressados ritmando cristos redentores e consolações congestionadas. Tudo tão misterioso no espaço compacto da portinhola que prefiro folhear os magazines retrôs enquanto no metro tu despencas por profundidades febris e enfrentas monstros repugnantes, reis torneados em ouro e diamantes, amantes brutais que te despem solitários e tremelicam corpanzis pouco asseados. Quando regressas, surges sorrindo com a rua por detrás e perguntas o que fiz aquele tempo todo de batalhas insanas, digo das encomendas e de um som agudíssimo que ouço quase sempre entre um sonho e um gole de gim, justamente quando apareces com a silhueta recortada por um poente do outro lado da rua que se estampa em meus olhos feito poemas de um amor piegas e doloroso. Quando tu regressas, o que em torno do mundo se consagra são estrelas de outra natureza diferente dos deuses e das dúvidas, estrelas que não cobram companhia. Quando não dormes usa-me até a exaustão me deixando para depois quando ronronas meu nome e dá sentido à vida e à minha ida por entre as estrelas que descreveste um dia como brilhantes suspensos, uma metáfora dos próprios olhos pousados sobre as luzes da cidade bárbara, refletidos para sempre na manhã que por cima de si puxa as cobertas cinzas.

domingo, 25 de outubro de 2009

O silêncio da deserção


Até onde sei calei-me não de um silêncio convicto, mas de um vazio de olhares, calei-me da ausência de verbos irregulares que pudéssemos conjugar sem pressa numa única pessoa enquanto os festejos perseguissem as horas. Calei-me de marés altas e da fartura as tantas, calei-me de conveses abandonados e porões inda mergulhados na tinta fresca da memória. Calei-me de silêncios entrincheirados argutos acompanhando-me os passos, e calei-me das aventuras impróprias que adormeciam antes que eu retornasse dos caminhos incorpóreos do sonho. Calei-me das agressões que me lamberam as faces e me atiraram aos leões, calei-me dos milagres viciados nas esquinas, das aparições paridas no cortejo fumegante dos cafés, calei-me para ver-te dançar, requebrar-se cabrocha, contorcer-se odalisca, misturar-se aos sons inaudíveis da extrema-unção. Calei-me das terminologias, das aliterações, calei-me das dormências e dos sacrifícios, calei-me de calores incontidos e dos bons modos e quando arremessado contra a turba calei-me num voo cego. Até onde sei, procurei nas fechaduras, ranhuras, brechas, portas entreabertas calar-me mais do que pensei e apenas ressenti o mal dos carinhos noturnos. Calei-me amanhecendo com as fuças ainda cheias de sua genitália, calei-me no corte da navalha e na lavanda das prostitutas, e calei-me destas cruezas abstratas que desenham seres pavorosos nos noticiários e incensam as poucas verdades veladas atrás das portas. Calei-me dos trovões e dos ruídos que desciam as escadas na ponta dos pés; bailarinos meninos escondidos vizinhos deitados ao meu lado. Calei-me destas cerrações que nos fazem sombras dentro das espirais de um mundo em movimento, e calei-me destes mesmos movimentos puxando todas as gavetas de um caminho de pedras e fragmentos e vísceras e autores catalogados no silêncio das bibliotecas. Calei-me das especiarias e sob o cutelo dos magos calei-me por definição e muito mais do que pensei.

domingo, 27 de setembro de 2009

Versos para o fim do mundo



(creio em ti e no fim do mundo; creio mais no frescor da sua pele e na redenção que encontro entre as suas pernas; creio nas palavras que se calam quando nos agarramos exaustos e tudo se acaba por alguns minutos)

I
Remoo versos entre os dentes
Sementes que viciam chãos
Versos que cuspo entrincheirado
Na lonjura aflita da solidão

II
Pequenas orgias mastigadas
Na estonteante vastidão das manhãs
Ninfas castas adoradas
Labiríntica Ariadne, bárbara Iansã

III
Versos que se confluem melancólicos
Que tanto cantam a loucura dos amores
Caprichosos gestos alegóricos
Versos que enraízam em vida suas dores

IV
As virgens então se contraem
Furtadas do gozo da aparição
Trespassam-se infelizes e se traem
Soltas num fim de mundo que viceja orvalho
Para muito além das trilhas e atalhos
Para muito além de qualquer conspiração.

domingo, 23 de agosto de 2009

O PARAÍSO DE OZIRES

(o paraíso de paredes pichadas amanheceu destroçado)
Em alguns dias e, se bem me recordo, naqueles mais tristes, quase descoloridos, nos quais a imaginação encontra tintas frescas e faz das suas recolorindo paredes e paisagens, agarrava-se a uma frase suspensa e pedia a deus que tudo recomeçasse dando passagem aos desencantos e aos santos de plantão. Não acreditava em deus, mas o imaginava sempre por perto, embora lá fora, caminhando de um lado para o outro, Xangô vigilante. Preferia-o mais próximo e por isso não acreditava nele, já que nunca ao alcance do toque ou das narinas. Quando alguém batia à sua porta, esquecia-se da frase que voava pelo quarto e corria para abrir; olhava o pouco que via, imaginando expressões e, por vezes, ofendia-se; voltava ensimesmado para o fundo do quarto e perguntava se por um acaso não se transformara numa ilusão, num trecho mal escrito de um livro ainda mais medíocre. Dizia que não, que ele estava ali, embora o fundo do quarto lançado numa meia-luz trôpega o deixasse um pouco mais velho e amarelecido, como numa foto antiga, e se não fossem os movimentos lentos a procura da frase solta pelo ar, até que seria mesmo algum enfermo no paraíso recolhido dentro da casa enorme. Sim, porque lá fora, no resto da casa, os cômodos todos pilhavam a si mesmos, as paredes - que sempre tiveram ouvidos – estabeleciam a lei do disse me disse e todos que chegavam eram pegos de surpresa, acossados pelas estórias mais estapafúrdias que portas e janelas pudessem conter e contar. Nessas horas você dizia que por isso deus nunca entrava e porque não entrava não acreditava nele. Na verdade você não gostava dele e gostar ou desgostar implicava diretamente no fato de acreditar; não acreditava, também, em muita gente de carne e osso. Você me convidava à sua meia-luz onde sempre havia um café, um play dos novos baianos ou da Ângela Rô Rô, às vezes, um poema novo que você escrevia em qualquer lugar, gostava daqueles que surgiam como pichações nas paredes úmidas do seu paraíso escuro; lê-los era um desafio porque se misturavam uns aos outros na medida em que você os escrevia sem critério algum, a não ser o de se agarrar à frase que flutuava desatenta buscando o tantinho de janela aberta para então mergulhar lá fora. Não sei se é fato ou imaginação, mas quero lembrar-me de vê-lo feito uma seta voando atrás da frase fugidia, apanhando-a a centímetros da fresta e em seguida arremessando-a, com a tinta mais à mão, contra a parede. Quero lembrá-lo antropofágico gritando sandices em meio aos convites para o almoço que você mesmo prepararia.
Em outros dias mais felizes, deixava-se embriagar da luz que o invadia e não escrevia nada, e não que as frases não voassem mais pelo paraíso, mas porque não tinha forças. Tanta felicidade lhe doía todo e o fazia aparvalhado em meio à fumaça dos muitos cigarros que acendia um no outro. Nestes dias claros sentia-se vampirizado, longe de seu esquife, exposto às gargalhadas que lhe sorriam os parentes. Só nesses dias vinham vê-lo. Vinham vê-lo como se olha um espécime enjaulado. No paraíso, a luz se confundia com a fumaça e de vez quando saltava do fundo com seus olhos de lêmure esbugalhados, ação que fazia tios, irmãos e sobrinhos correrem pelo corredor que mais cedo ou mais tarde daria lá fora, junto a deus e sua vigilância sem princípios. Ele e deus eram assim meio irmãos separados pela fresta do universo que sempre os trazia para dentro da mesma festa, da mesma canção, mas que também os obrigava a fechar um olho e olhar um para o outro como quem olha pelo buraco da fechadura. Às vezes, me olhava assim também, e então eu não sabia se ele me confundia com deus ou se eu o confundia com os poemas pichados nas paredes que agora desabavam em campina aberta e me faziam ajoelhar para beijar tua fronte na lápide onde não tem nada escrito mais bem poderia deixar ler alguma coisa escrita por você há tanto tempo que nem sei quando, mas sei mais ou menos algo como que namorenando sereias helenas embriagado com lindas baianas em tons gerados azuis e vermelhos esferográficos e novamente o paraíso enevoado com nossos sorrisos de amizade surgindo como que num flash ou num passe de mágica.

(para Ozires, um ano além daqui)

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Asas de mariposa

Fui buscá-la pela mão e o sorriso desferido golpeou-me o queixo como um gancho. Acho que tocava uma canção do Djavan e querer do espelho outro movimento que não os dos seus quadris de lá para cá e os braços suspensos na dança iluminada de um almoço adiado seria pedir demais, então pedi sua mão e a beijei. Outro dia, depois de tudo, pedi um café. Você estava de salto alto, quase da minha altura folheando alguma coisa sobre moda. Nem liguei. Havia um ar de descaso no gesto e no olhar caído sobre as páginas. Resolvi fazer poesia, mas não sei escrever poesia na maioria dos dias. Sei escrevê-la aos domingos, dia de festa e maresia, também nas madrugadas de sábado no aconchego das orgias, não sei brindar com vinho tinto nem morar longe demais, não sei rezar então minto e mentindo rezo um pouco, rezo aos santos ocos e barrocos, aos santos da Bahia e do Afeganistão, rezo pelos cotovelos, mas principalmente de solidão. Não sei rimar direito, não conheço palavras bonitas, por isso rimo sem vigor, em geral, às escondidas sob o cobertor, minhas poucas verdades caladas, rimadas de afeto e estupor Não sei escrever poesia, mas sei que nossos encontros se desfazem como asas de mariposa entre os dedos e talvez por isso façamos de conta tanta autossuficiência. Querer outro movimento que não o do seu respirar cauteloso por sob o tecido da manhã, sabendo-a pronta para o banho e depois uma laranjada na varanda, seria condenar-me à prontidão nas esquinas pelas quais você passasse tranquila dizendo coisas tão sensatas quanto efêmeras, tão dissonantes como afiadas. Nestes dias não seríamos flores sem rega e nem um torpor que se inclinasse sobre os mortos buscando-lhes ainda alguma vida. Quem sabe um sopro e nossos corpos acordassem prontos para outro encontro e nossa juventude imprecisa riscasse do calendário nossas marcas de expressão.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Depois daquela cena (take 1)


Tão pouco do abraço fica contra a luz das vitrines, tão pouco da gente nos carros que voando passam sem sentir o que imaginamos depois das portas abertas e da cena mal dirigida. Você atenta e nem aí para o meu amor, eu nem aí para o seu corte de cabelo meio punk e uma tatuagem estranha logo de cara no antebraço. Depois um sanduíche, novos diálogos (tão antigos) escritos ainda ontem, coca-cola que é sempre como sentir-se vivo em qualquer parte do mundo, mesmo tendo essa cor tão preta, parece piche[1], mesmo que não voltemos à cena, que nos percamos em pequenos fragmentos de estrelas e então uma porção de fritas agora que é quase noite e uma cerveja já não faz diferença, mas também não nos aproxima mais que um copo e mais outro noite adentro discutindo as melhores tomadas, e pouco depois já dia clareando por sobre os ombros é que te vejo tão bonita noite em claro e te abraço desejando bom dia pensando que talvez as vitrines retenham o reflexo da minha paixão. Desço a rua triste cansado moro perto ando a pé você tão longe manobra ré primeira segunda e some à direita tão na minha CONTRAMÃO.
Você pode até imaginar que eu suma na cadência de um samba inspirado, mas nem inspiração, tão pouco cadência no sumiço que tomo depois de nem me despedir. Saio à francesa deixando no ar a fragrância das minhas dúvidas e um pouco das incertezas que bebi em diferentes copos. O samba vem de um ponto qualquer da cidade, uma calçada de gente que nem se olha, mas que samba; samba e também some sem aviso-prévio entre os prédios e os carros que voando passam sem sentir nenhuma dor, sem perceberem que sigo sozinho ao contrário de tudo para onde vou.
[1] Alusão a um verso do poema Mural 79 de Edson Eugênio dos Santos

terça-feira, 7 de julho de 2009

O VOO DO ANJO SEM COR

Navegas só agora pedra e
Afundas num céu de sorrisos bobos
Arlequins que não se tocam anjos
Nem sonhos que se deixam tocar
Não és mais o eu nesse instante
Quem vive ou se confunde gente
És um ser habitado na passagem
De um agora para outro adiante
Quem habita não se sabe habitante
Quem fica não se percebe ausente
A pedra que voas edifica
Alguém num espaço de vazios
O que se edifica é nada
Mas tudo pleno e perfeito
Um plano que aterrissa sereno
Mesmo que sem muito jeito
No meio de um todo de pó
Regressas de tantas partidas
E partes de uma vida só.
(para Michael)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

À TERRA DO NUNCA

Fiquei do começo da noite até agora pensando no que escrever...um poema, uma frase de efeito...uma bobagem qualquer que encantasse pelo tom emocionado...até que resolvi escrever o que viesse à telha...
1973, eu tinha onze anos. No rádio, uma canção teimava em me lembrar o quanto eu estava apaixonado...era a minha primeira paixão...avassaladora...a canção Music and me...a garota nunca soube...quem sabe por um destes milagres tecnológicos saiba hoje ou por estes dias o quanto fui apaixonado naqueles dias...agora já não é segredo...36 anos...puxa, parece que foi ainda agora...Lilian era o nome da garota...Michael, o nome do garoto que cantava no rádio, um pouco mais velho, 14 anos...e apesar da pouca idade, o conhecia há tanto tempo...tinha até desenho na TV! Jackson Five...às vezes eu ia à janela do meu quarto, deixava o rádio ligado e esperava a canção...quando tocava, olhava na direção da casa dela e ficava ensaiando as palavras que seriam ditas quando, finalmente, criasse coragem para pedi-la em namoro...nunca pedi...de qualquer forma Music and me foi a canção daqueles dias, dias tão doces...doces como a voz do garoto que cantava no rádio...acho que por isso nunca esqueci...
O garoto foi hoje à terra do nunca...acho que vou à janela...olhar um pouco para aqueles dias...dias tão doces...

quarta-feira, 17 de junho de 2009

(per)plexo

A porta range e o princípio da noite desfia a cena: jogado na velha poltrona não vejo você, apenas ouço o ranger de tanto tempo e que não significaria nada além de mais um entre tantos miseráveis entrando a cata de alguma porcaria que deixasse seu fim de tarde menos podre e descolorido. Mas é mesmo você; vejo quando você levanta a minha pálpebra direita entrando inteira no meu campo visual perguntando quantas eu havia tomado e se, por um acaso, fazia ideia da semana, dos riscos, das pessoas que se perguntavam onde, como, quando; arrasto-me até o banheiro e noto o quanto o registro do chuveiro é alto, tão alto Everest das minhas águas salvadoras que me deito sob os furinhos pensando que talvez uma dor aguda me eletrocute e recebo na cara um jato gelado avisando-me que tudo aquilo é a mais intensa realidade e que tanta realidade só é possível quando você chega trazendo alguma comida e cigarros comuns. Ouço sua voz dizendo que está separando uma roupa e que a toalha já está sobre o assento do vaso sanitário; empurro a cortina e o mundo parece menos fétido e mais compacto. Sento-me e deixo que a água gelada escorra mais alguns segundos, o bastante para sentir-me outra vez provido de pernas e alguma boa vontade.
(A cena)
Nada tão possível quanto assombrar-se no escuro da cena fechada é mesmo tatear as paredes de um sonho do qual se acorda tantas vezes quanto nos invada. É um vozerio que se trás de fora, através das páginas que folheias como se alguém fosse chegar e interromper, então melhor nem ler, só passar os olhos de mariposa inquieta. Estarei sempre em cena, mesmo que abandonado, sem falas e sem gestos, cenográfico.
Deixo o banheiro nu e atravesso o corredor arrastando a toalha amarela. Fica um rastro molhado que muito a irritaria, mas daquela vez você sorri e diz que a roupa está sobre a cama. Pergunta se estou com fome e rujo. O dia acaba quase lento, há uma dúvida no tempo que não sabe se ajustar, há velocidade num ponto e paralisia no outro e me deixo sorrir pela 1ª vez em muitos dias. Nu, vejo-me no espelho imenso que quase não conseguíamos carregar lá daquela loja de velharias na São João, ele está trincado (já estava quando o compramos e nem assim saiu mais barato) e a trinca provoca uma curva que habitualmente não tenho aqui na altura do plexo, você diz que o plexo solar é um canal para com a divindade e, em geral, gargalho com essa conversa. Mas não hoje. Hoje estou quase vivo outra vez, muito embora não consiga encontrar as roupas, onde elas estão mesmo? Ah, claro aqui em cima da cama; demoro um pouco olhando a cama e talvez por estar nu e você logo ali tão próxima preparando alguma coisa prá comer, penso em quantas vezes te comi nessa cama, e penso que talvez as paredes tenham registrado tudo, áudio e vídeo; paredes têm ouvidos, certamente têm olhos.
(Espelho)
Atravessei-o tantas vezes; uma espécie de Alice pouco contida e nem tão heróica, um ser transfigurado e trespassado das imagens que conspirei quando sorvido pelo abandono da cena. O espelho é mais profundo e sumo sem me refletir.
Ouço o barulho dos pratos e volto da última cena; estou bêbado e não consigo satisfazê-la, você faz de conta que compreende e vai fumar um cigarro junto à janela. Chovia muito daquela vez e você foi embora debaixo de chuva. Visto a roupa e ainda cambaleante chego à cozinha, suco de laranja e omelete. Agradeço e como feito um cavalo. Você pergunta o que acontecera e sorrio dizendo que nenhuma novidade o de sempre, enchi e cara, fumei que nem louco, enchi a cara de novo e posso jurar que estava muito longe de casa, não sei como cheguei aqui. Então você me olha do fundo da sua cena predileta, caminha até a porta, para e vira só a cabeça me mandando para o inferno, depois volta até a sala escolhe algum disco bem antigo dos Stones e o no último volume coloca um blues que me faz chorar como criança. Arrependo-me contra o azul indeciso do céu que se despede e dou de cara com acordes que me rasgam o tal plexo que não me deixa ver a cara de nenhuma divindade e mesmo assim volto até aqui e peço mais uma e desmaio de tanto você, de tanto que você bate a porta sem olhar para trás.
Hoje não. Hoje você me olha de tão perto, mesmo que a sua cena predileta insista em se repetir a nossa frente, hoje você não me detesta durante estes minutos em que você me encontra destruído, hoje você está tão bonita e esta omelete tão cheirosa, talvez eu a coma mais tarde, assim que eu consiga sair daqui, deste lado da porta que range; que range porque a janela está aberta e o vento que já é outro brinca com ela para lá e para cá; que range a noite toda sem que eu consiga sair daqui, do fundo desta velha e confortável poltrona de onde avisto estes monstrengos ávidos por alguma porcaria que os faça compreender a transição da tarde para a noite ou porque estão ali espiando meu corpo nu inerte na poltrona velha. Você não surge entre os mil rostos espantados plantados à minha porta que range. Não me arrasto até o chuveiro. Tão pouco me alimento. Peço um cigarro e que entrem, há lugar para todos, até mesmo prá você caso decida voltar.
(Janela)
Não houve um sequer que não tenha visto tua silhueta em destaque, e depois não me tenha culpado pelo silêncio de todos os outros dias.

terça-feira, 26 de maio de 2009

DO SORRISO DAS PEDRAS À CRIAÇÃO

(anjos e furacões)
Os olhos atentos no horizonte agora cheio de anjos feios e furacões em nossa direção, ainda assistiriam a própria dor. Ainda saltariam de suas órbitas regulares e procurariam abrigo em sistemas inabitáveis. Volveriam à dor lancinante de se verem lacrimosos, arrancados de cena e de qualquer possibilidade de novas visões. Enquanto não nos abordam encho a cara de uísque contrabandeado, caro e perigoso, sem perder de vista os dois que dormem no quartinho ou, quem sabe, bem acordados planejem fugas ou gargalhem espantando a imobilidade das horas. Talvez ninguém acredite e nem vigie a escotilha ou mesmo lance âncora na esperança de peixes maiores; talvez eu e você, mergulhados na lama do mangue, nos amemos até que o horizonte suma e não deixe rastro algum de seus comensais. Mas sem perdê-los de vista. Eles mesmos, depois de crescidos, nos olharão como agora olho o horizonte de anjos feios e furacões, eles mesmos nos tocarão sem pudor e quando se fartarem nos arremessarão à imensidão destas águas sombrias; melhor aquietar o facho deste lado do sonho, manter os poros respirando e as promessas por sob o celofane dos anos. Daqui a algum tempo abro as portas, permito que saiam quase cegados pela luz do meio-dia e os violente antes que a lama me entupa com seus odores e sentinelas.
(a perdição do meu olhar)
Tenho mesmo a você e você talvez nunca me tenha olhado como se olha um monstro, e não que me sinta um monstro, mas os crio no quartinho desde que eram girinos esverdeados, depois perderam o viço e a cor; seus sexos se tornaram evidentes e foi quando os engaiolei. Chorei muito, especialmente nos primeiros dias quando sequer sabia o que queria, além de que parassem de se machucar. A perdição do meu olhar era vigiá-los por horas espiando pelas frestas até que um dia, quando de relance volvi o corpo na direção contrária e notei o horizonte carrancudo; só depois compreendi que eram os anjos e um furacão que então passou a se formar todos os dias. Naquela mesma hora achei tudo diferente, mas como o tempo não permitia, nem liguei. Ocupei-me das preces e das refeições durante o dia e de você nas outras horas. Você não se preocupava com o tanto de olhar que eu perdia todos os dias, jogado por cima da baía como que buscando contornos do outro lado, ou quando gritava de madrugada e acordava num sobressalto jurando que todos os astros mortos agora recitavam versos estúpidos e se alinhavam no horizonte. Enquanto tudo remexia nossas vidas, eles cresciam.
(a arquitetura dos dias)
Quando resolvemos que já era hora e que o horizonte iria aonde quer que fossemos, morar no barco foi mesmo a melhor solução. Se não nos livrássemos daquelas caras horríveis e daquele vento que baforava a cada segundo mais forte e fedorento, se não os colocássemos do lado que melhor proporcionasse suas pinceladas permitindo que as horas fossem se arquitetando em papel e dias abandonados mesmo que pelos cantos, tudo ficaria por conta das habilidades que sequer sabíamos se possuíam. A chance seria vê-los aprender outras coisas, falar a mesma língua quem sabe, afinal depois de tantos anos já se pareceriam o bastante com cada um de nós, exceto pela cauda.
(o sorriso das pedras)
Se ainda houver tempo e caso você ainda não me tenha entendido, é simples. Casamos muito jovens e como ainda não tínhamos despertado para todos os prazeres, passávamos horas passeando e nestes passeios as descobertas eram frequentes; descobríamos de tudo, desde pedras que sorriam com o toque delicado das tuas mãos, até anéis de minúsculos contornos que adornariam os dedos de seres que só víamos de relance e quase a beira do sono profundo. Num destes passeios ouvimos o coaxo choroso de dois seres pequeninos perdidos entre as pedras que te sorriam. Corremos crianças e na volta éramos adultos atormentados com o olhar profundo daquelas criaturas; decidimos ali mesmo criá-las como a dois animais, mesmo que, conforme revelado algum tempo depois, começassem a imitar nossos gestos e nossas destemperanças.
(do caos à lama)
Da terra saímos fugidos, tangidos por um povo caprichoso que os imaginou dois diabinhos. Não era, nem nunca foi naquelas paragens costume criar demônios, e como todos estavam irredutíveis, irremovíveis da crença estúpida de que nossos animaizinhos eram íncubos a mando do próprio excomungado, subimos a bordo também acreditando que um dia eles nos comeriam vivos e se, um pouco piedosos até em razão do bom e do melhor a que sempre tiveram direito, nos matariam antes da desossa. Mantê-los sob vigilância tornou-se profissão de fé, se bem que matá-los deveria estar na pauta mais vezes. Sabíamos que mais cedo ou mais tarde selariam nossos destinos e por sabê-lo, íamos a terra fartamente, mangues de lama mal cheirosa e cheia de caranguejos vermelhos. Fazíamos amor ouvindo o ruído da lama espremida entre nossos genitais e mesmo a certeza de que éramos observados não nos arrancava um do outro. Na verdade, a sensação era muito boa, quanto mais profunda, mais fria e densa era a lama, o que dificultava o vai e vem de nossos corpos e nos deixava ainda mais agoniados. Depois de certo tempo nem o odor horrível nem os olhos que espiavam, chegavam a incomodar; cessávamos somente por eles e nem imaginávamos o que era amor.
(a beleza da criação)
Os anjos amanheceram mais próximos do que nunca naquela terça de carnaval. Estávamos a uns dois quilômetros da praia e mesmo assim a festa parecia bem aqui ao lado. Entre fogos de artifício, cantorias e batuques, a cara imensa dos querubins sentenciava: era hora. Os furacões, então descobrimos, eram sopros angelicais que fizeram voar alguns pertences do tombadilho, lembro que aquele avental usado para tratar os peixes voou na direção da orla e imaginei que quem o encontrasse não entenderia as razões de seu voo, mas apesar disso não hesitaria em vesti-lo e sair à farra das batucadas ainda acordadas. Surpreendi-me pensando estas tolices e como que, finalmente ligado ao dia, notei que você rezava. Os dois monstrinhos gritavam ensandecidos e os anjos pousaram lentamente. De perto eram belos, tão belos que não lhes pude olhar muito tempo, tão belos que as suas orações se transformaram em profundezas de palavrões e versos sem sentido, tão estúpidos como aqueles que eu recitava depois dos sonhos e deixavam minhas manhãs como que se fossem frutas podres que eu tivesse que saborear. Um dos anjos desceu ao quartinho e voltou com os dois, um de cada lado e, exceto pelos rabos, quase não os reconheço. Eram dois seres lindos, um macho e uma fêmea, cada qual com quase dois metros de altura e cada qual cercado por um halo luminoso que me fez desviar os olhos. Você não orava mais, nem xingava, você, na verdade, com um par de olhos extasiados cegava-se pouco a pouco. Antes do golpe vi ainda o filete de sangue que lhe escorreu do canto do olho esquerdo.
(ancoradouro)
Quando voltei a mim a embarcação estava abandonada às ondas e tinha mil anos. Os fantasmas que a habitavam lançavam redes esfiapadas a cata de peixes extintos. Eu o sabia, pois já nos meus tempos de vivo, os peixes escasseavam a cada maré. Andei pelo convés sem assustar-me com os pobres zumbis maltrapilhos que se esforçavam na puxada dos frangalhos. Um ou outro me olhava com aquilo que seria um olho e um ou outro se atirava ao mar. Foi quando percebi que o único fantasma a bordo era eu e que aqueles infelizes eram viventes tangidos pelas ondas que em verdade eram as asas gigantescas dos anjos que há mil anos me esfacelaram o crânio. Foi quando aturdido notei que as redes eram nossas roupas e que seu corpo tão alvo como a lua que nunca mais vi, servia de âncora para fixar cada desejo de arrebentar-se na praia. No fundo do túmulo, imerso na mais completa escuridão, uma escuridão inimaginável para quem nunca foi enterrado sob sete palmos, restou-me a eternidade dos lábios balbuciando que jamais deixariam de sorrir para as pedras, tampouco para a sua criação.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Todas as vozes que (não) estão lá

"...o melhor o tempo esconde longe, muito longe, mas bem dentro aqui..."
Caetano Veloso
Acostumei-me a eles. Quando não saltam dos armários ou empalidecidos escapolem dos velhos álbuns de fotografias e se misturam às folhas que nunca recolho, estranho. Estranho tanto que saio a procurá-los, abro baús, portas alheias, reviro bolsos e carteiras, sequer as frestas me escapam. Se necessário vou a outros bairros me certificar se, por um acaso, algum acabou esquecido dentro de uma conversa qualquer levada há tantos anos. Mas é em casa - quem sabe espremidos entre os vinis, entre algum falso brilhante e a solidão de um blues fora de ordem, caídos atrás da estante da sala, é aquela mesma feita sob encomenda e que só cabe ali e em nenhum outro canto do mundo - onde mais costumeiramente tropeço neles.
Quando encontro algum vou logo perguntando por onde andava, com quem, fazendo o que, meio paternal, meio ciumento, meio em dúvida, já que imagino que a vida seria melhor sem eles. Outro dia, um me apareceu trazendo notícias dela. Ela mesma! Aquela de quem só falamos quando estamos bêbados, dançando tão agarrados quanto distantes. Falou-me que ela estava bem, morando em algum lugar perfeito, vivendo com alguém perfeito e fazendo coisas estúpidas como, por exemplo, conviver com tanta perfeição. Falou-me também que quase morre numa crise existencial. Não! Ela não! Ele. Ela estava bem, saiu de uma das gavetas da cômoda, aquela perto da parede que você vivia implicando, não sei se com o modelo ou com o fato de ter sido presente dela. Acho que com os dois.
Também eu quase morro, sabia? Foi há alguns dias quando eles resolveram aparecer ao mesmo tempo. A dor era tanta que tomei o vidro todo. Lembro que você dizia que isso de tomar um monte de comprimidos era coisa de bicha ou mulherzinha – palavras suas! Nunca concordei, embora hoje tenha lá minhas dúvidas. Tudo bem, eu já devia saber que deu não leu aparecem todos e mais alguns. Não faz mal, eles são assim mesmo e sempre tem alguma novidade, seja no fim do dia frustrante de trabalho, seja no espelho e a descoberta de mais um vinco no rosto, seja ao telefone e todas as vozes que (não) estão lá, tem sempre mais um a me visitar, invadir e resistir lá no fundo onde só alcanço em dias de muito sol.
Quando vou dormir sinto que eles se reúnem ao meu redor e preocupados velam a noite inteira. Quando acordo, estou só. Tudo parece tão calmo nesta hora que precede as pequenas mortes que morrerei durante o dia, neste instante que de tão pequeno é indizível, mas mesmo assim precede as coisas simples que vão se desenrolando como fazer café, a barba que só faço às vezes, a escolha da camisa, da meia, e aí eles vão chegando, uns mais afoitos, outros mais discretos. Minha sorte é que já é hora de sair e dependendo de quem apareça tudo ficará em suspenso até o entardecer quando eles vêm ao meu encontro esteja eu onde estiver. O engraçado é que mesmo depois da overdose, mesmo depois de tantos anos e de tanta dor, mesmo depois de tanto silêncio eu me sinta assim, acostumado.
Tê-los por perto, mesmo que incrustados no peito, confundindo-se com meu suor, meus cheiros, atravessados na garganta, roubando meu cobertor, lendo meus livros e os abandonando à própria sorte, esquecendo o jornal por todos os cantos, ligando e desligando as lâmpadas, mesmo assim o convívio com eles parece ser a única forma de vida possível. Você compreende? Não que eu não me sinta vivo, é claro que me sinto vivo, você me faz isso, quer dizer, você faz com que eu me sinta vivo, mas é sempre tão passageiro, não nos impregnamos, não ficam marcas, você compreende? Não há nem ferro nem fogo! E sabe do que mais? Sei que com eles funciona da mesma maneira. Se eu sumo, eles somem. Eles não existem sem a minha vida e a minha vida já é parte deste ritual, você compreende? Consegue compreender que os fantasmas só fazem sentido se tiverem a quem assombrar? Consegue?

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Uma janela para sempre

(para alguém que se saberá)
Como em qualquer outra manhã você vai à janela, mas ao contrário do que habitualmente vê, vê que não continuo mais pensando em você, não que eu tenha desistido, é que um cansaço tão denso, tão intenso, acabou por vencer-me, e o que você olha não é mais a mesma cena tão familiar, você vê apenas a luz e o caminhar das pessoas, o farfalhar dos passos sobre o outono, mas não vê a manhã de fato e nem o caminho, não me vê folheando os jornais ou pedindo mais um café até que você apareça e peça o seu com leite e eu te olhe como em todas as outras manhãs como se a visse pela primeira vez, lembra? Vocês discutiam a impermeabilidade de alguns escritos do Cortázar e ouvi aquilo tudo tão atentamente que nem me dei conta de participar depois de um jeito tão ávido; queria impressionar, afinal vocês discutiam com tanto entusiasmo e conhecimento. Você não percebe, mas a manhã sequer está ali, em seu lugar um azul desbotado quase mortificado nas gazes de uma cerração esgarçada, e dentro disso movo-me sem pensar em você e isso é tão estranho quanto acusar a manhã de abandono, pois se não penso é porque estou mais morto que a esperança amanhecida feito pão de ontem, migalha, sem eira nem beira como naquele encontro, falamos de antigos namorados e de como fazíamos amor, te achei tão linda e tão nua vestida de cores calmas, me achei tão calmo dentro do paletó e por detrás da barba mal feita, te achei tão doce falando de bolos, tão culta escrevendo livros, te achei quase tudo e, no entanto, era noite e a noite sempre teima em dizer-nos que até mais, amanhã a gente se vê nem que seja por um minuto, mas o minuto de uma mulher surpreende tanto mais que esta manhã que nem existe mais, mas que você insiste em olhar pela janela como se ela ainda lhe trouxesse o meu jeito de pedir o meu com açúcar e o seu com leite e adoçante. Quem sabe um pintor resolvesse o vazio desenhando em frente à sua janela um banco de jardim no qual eu me sentasse todas as manhãs esperando que você a abrisse. Quando você abrisse a janela eu te acenaria não um adeus, mas um “vem cá”, tenho aqui dois cafés, um com leite, e uma vontade louca de que a janela se abra para sempre.

domingo, 12 de abril de 2009

Crônica de um naufrágio anunciado

Atrai-me o drama de um adeus no convés; atrai-me mesmo se for às escuras, por sob os cobertores, um adeus contrito, quase prece, soluço de cores piscando na insistência dos olhos abertos dentro da cerração, quase do outro lado quando a manhã violentamente explode com todas as malas prontas e com todas as dúvidas ainda por serem dirimidas, algumas escondidas nas dobras dos lençóis, outras mais robustas afastando os móveis, criando situações desagradáveis, destemperando humores, asfixiando com palavras caladas, apressando os gestos e o elevador. É quando nos esbarrões pelo apartamento descobre-se que não há mais poesia quando nos tocamos, mas uma espécie de pudor epidérmico ressequido em nossos corpos velados, nada mais se revela além da abundância das despedidas em tantas manhãs minimalistas, nas quais um suco de laranja, fatias de pão integral, documentos sobre a peça que você insiste chamar de arca, as chaves do carro sempre no mesmo lugar, tudo exatamente a mão, tão pasteurizado e em comunhão com a mesmice dos sorrisos e dos sabores. Depois, o caos das ruas, o olhar maquinal que atravessa os minutos de um instante até o outro carregando um fotograma desfocado, uma mudez fixa e virtual entre as indecisões de um caminho tão familiar e, no entanto, tão desconhecido. Lembrar ainda, que dali a pouco nos veremos dentro das órbitas alheias transfigurando a mudez em monossílabos aquiescentes e prestações pouco vivas, sim porque tudo voa e se espatifa mais a frente quando nos dizemos adeus assim que nos encontramos nos conveses dessas nossas viagens e desaparições. Tudo me atrai e trai-me tão intensamente que sangro meus sonhos num último beijo antes de deitar, antes que o tempo me converta e eu morra hoje como ontem, acenando do convés de uma embarcação que quando parte já é tão tarde como nunca.

sábado, 21 de março de 2009

Um toque de leitura

Não quero que venhas depressa, mas nas pontas dos pés. Assim, feito bailarina. Quando chegares bem perto, quando enfim assumires as proporções de mulher recortada sobre um fundo disforme, não me furtarei ao toque na tua cintura num pax-de-deux que tanto me agrada e atemoriza. O livrinho que carrego, deixarei para que leias, mas não em momentos de silêncio, leia-o em meio à turba dos lotações, no momento do pênalti desperdiçado ou quando das execuções, leia-o em voz alta aos berros de bezerro desmamado, em meio às brigas de casais, nos terreiros de nossas áfricas domésticas, sob as goteiras das marquises enquanto o ônibus não vem, mas sim, me desculpe, onde estávamos mesmo antes do livrinho que carrego e que gostaria que lesses sem amargura mesmo quando à morte de alguém tão querido, mesmo que os teus homens gozem tão antes de te arrebentares contra a dor incomunicável de um prazer medonho e cego fora da cama, por entre as plantas, contra a porta, escorrendo melancólico feito um adeus. Há também um adeus em cada página do livrinho. Perceberás que são adeuses sem ressalvas, secos e dirigidos às mulheres que me abandonaram antes da minha felicidade provisória, aos idiotas que arvorados na história removeram minhas tripas mais açougueiros que clínicos deixando um vão, um talho daqui até o fim da nossa pouca sorte manquitola escorada em arrimos de pouca salubridade. Se estiveres levitando - minha doce bailarina - saiba que repousarei o livrinho como de costume, naquele banco de jardim (dizem que ali casais mascarados fizeram juras aflitas num carnaval cuja eternidade duraria até as cinzas, depois viriam outras páginas tingidas de uma morte tão natural que escrevê-las seria como esta dança que não canso de desejar). Se não o encontrares é porque alguém desavisado o terá levado junto ao peito, protegendo-o da chuva de projéteis perdidos que se acumulam no céu a espera de passantes sem nomes, mas de nada importará, pois não terá nome além de livro, nem feições além das suas, não terá sequer aspirações além daquelas comuns às páginas viradas, fixadas sobre um fundo de paisagens em movimento.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Cortázar e Gabo um tanto nas (entre)linhas

"[...] vou me fazer de moderno no meu encontro com Deus"* (Sérgio Sampaio)

Alguém que anda por aí com aquele de quem lhe falei só pode mesmo causar alvoroço. Nem sempre é fácil entendê-lo o que, aliás, é tarefa para poucos; se muito, o que se pode tentar é alguma coisa que sirva como aceitação dos gestos e atitudes ou como parte de um repertório mais ou menos fantástico e que agrade os povos em vias de extinção. Se como pano de fundo há uma orquestra ou mesmo um DJ que busquem em suas evoluções uma antecipação da próxima manifestação divina, é certo que chova uma garoa fina sem comprometimento nenhum com o estado geral das ruas ou com a promessa de que não morreremos por conta dos pecados que tenhamos cometido ao longo do último dia. Se, por outro lado o palco nada sugerir além do que prevê sua conformidade de palco, o segredo de Diadorim estará para sempre seguro. É certo que depois de tanta dor amanheça um dia fora da semana, um dia que ainda não foi gerado pela dinâmica da rotação, um dia que ressuscita já que não aprendeu a matar.

Alguém que anda por aí com aquele de quem lhe falei foi antes denunciado pelo pai numa espécie de relação cristã que geraria algum lucro e certa poesia. Visto pela primeira vez, alguém que anda por aí – certamente orientado pelos gatos – já se insinuava feito uma sombra; daí que caminharem juntos pelos próximos anos de solidão não constituía nenhuma adivinhação. Os prêmios não seriam pagos até que a menina caísse extenuada depois de semanas brincando de amarelinha dentro daqueles dias ainda não inventados ou recebendo um a um, em sua pequena santidade, aqueles monstros insensatos. Tudo e mais um pouco lhe daria tempo bastante para visitar todas as prostitutas do bairro habitado pela distância dos sonhos de uma noite acordada. Na volta, alugaria uma casa – certamente tomada por generais inescrupulosos – e daria entrada nos papéis. Esperaria a noite de sábado para festejar a liberdade dos jovens e a detenção dos patriarcas. Na manhã seguinte, alguém que era deus talvez aparecesse trazendo dúzias daquelas pequenas dúvidas e notícias de um tempo que os jornais não publicariam jamais.

*trecho da letra "Leros, leros, boleros"

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Santificadas sejam as dúvidas e as esperanças

Algumas poucas sombras revelam ainda a luz chorosa, carcomida sobre os móveis, gotejante de alturas caladas em cujo cimo alguns anjos tramam a derrama de uma escuridão implacável.
Não acordei cedo; nem sei se acordei ou se transbordo sonhos além de mim e da exaustão. O fato é que as roupas estão jogadas por todos os cantos; as suas também. Tem-se a impressão de que foi travado um combate irascível cujo intento maior ou único fora o êxtase da cópula. Vencedores e vencidos? Não parece fazer a menor diferença já que você está ao meu lado tão combalida quanto eu e é quando me esforço para entender a situação; chove muito e percebo que sequer sei se tanto escuro tem razões naturais - noite? -, ou se obra de algum desgraçado encarapitado no meu telhado que cisma em apagar meu sol.
Aquelas poucas sombras indicam alguma coisa, mas como já acontecera antes, talvez não seja nada além da minha frustração se derramando sobre todos os meus pertences e mesmo sobre tudo o que não me pertença. No quadro, não me pertencem o vestido estampado, nem a lingerie. Não vejo sua bolsa, embora me recorde de suas mãos nervosas tateando a escuridão à sua procura e depois de um tempo (que então me pareceu eterno) tocar-me delicadamente cobrindo-me de prevenções, texturas e sabores.
As sombras são mesmo aterradoras. Gotejam securas e mesmo chovendo gotejam desertos, gotejam pedaços de outras vidas que por acaso se deitaram ali, talvez sob as mesmas circunstâncias, talvez imaginando alguma tolice que me associasse às fortunas, ou a um desempenho fora do comum. Talvez tenham acordado antes de mim e ido embora tão logo tenham notado as sombras, o resto de vodka, o cheiro que a pobreza deixa nas coisas, o punho esgarçado da camisa e o suor misturado a outras secreções tão mais virtuosas.
Você não foi embora. Dorme profundamente ou está profundamente ausente, presa a um sonho alcoólico que a faz vergar sobre o vaso e desamparar-se em tantos prazeres transformados. Não, não é mais sonho, você realmente está aí debruçada sobre o vaso, abraçada a ele como ainda a pouco se agarrava a mim. As sombras espiam ao mesmo tempo em que deslizam pelas paredes como íncubos oportunistas, vigilantes, prontos para desfazer a cena e editá-la sob formas de uma coloração demasiada - um take mais ou menos como em Almodóvar - cuja silhueta te apresente nua, muito branca, olheiras terrivelmente tingidas em azul-cobalto - se bem que sou péssimo na identificação das cores -, os cabelos molhados não sei se da das goteiras que imagino ou do banho que talvez eu tenha lhe dado. É possível ver os golfinhos que brincam no seu tornozelo esquerdo e girando um pouco o quadro as três estrelas que adornam o cume da sua bunda rija, redonda, agora acomodada à cerâmica fria. Os íncubos estão próximos e também a hora de acordar; não sei se durmo, ou se acordado pronto para preparar um café extra-forte, se morto imaginando um deserto gotejando em meu plexo e um sol violentado pelo pulha no telhado.
Devo disputá-la com os íncubos. Devo fazer valer os meus domínios e afugentá-los; basta que escureça um pouco mais, que o triste patife que passeia na cobertura fulmine de uma vez por todas qualquer vaga-lume que mantenha em torno de si estas grandezas suspensas.
Estou deitado aguardando que o escuro me invada os olhos e carregue para o fundo a lágrima que então ilumina o vão desta loucura. Neste vão você vira para o outro lado oferecendo-me toda a porção voluptuosa sobre a qual três estrelas me servem de guia e sem hesitar a cubro com meu corpo procurando a opulência dos teus caminhos, mas o que está oculto e grita das alturas são os anjos que tramam a derrama e já não é um grito que clama pela escuridão, mas uma gargalhada que destroça a madrugada e faz amanhecer impiedosamente. Não há quem furte o sol, não há mais nenhuma mulher que me ofereça estrelas, apenas a santificação de um quadro que pode ser dúvida ou esperança e que se pode pendurar em qualquer parede ou vender-se feito um folhetim editado às pressas, sem que ninguém percebesse.

sábado, 3 de janeiro de 2009

ALÉM DAS VIDRAÇAS, ADIVINHAÇÕES

Certamente, não se descortinam os edifícios à minha frente, pois concretos. Não posso tocá-los e nem afastá-los um pouco para o lado entrevendo teus passos conspirados pela vontade de quem narra; não posso sequer fazer-me ouvir tal a distância entre a realidade e as linhas que se multiplicam nas adivinhações do escritor. Estás do outro lado, aonde não te alcanço, aonde não posso lançar-te as cordas e nem a sorte; fixa às páginas donde arrancá-la corromperia a própria compreensão da trama. Estás quase levitando enquanto os edifícios medonhos e cinzas se esparramam no meu parco horizonte. Faz frio dentro da minha inquietude, mesmo que o sol desabe a pino. Faz frio porque me parece mais dramático. Atrás do vidro a incompreensão do sol agarrado à rua cega-me tão duramente que te esqueço a pique nas marés de outras avenidas; barcaças e barcarolas se fingem de ti, mas astuto não embarco, e por não fazer o papel principal lembro-me, além das vidraças que não te ouvem, dentro das roupas que não te vestem, ouvindo as músicas que teu corpo não dança mesmo em noites frias e depois de tantas tequilas, outra vez de ti. Lembro-me de buscar as trancas e deixar atrás de mim a porta escancarada sem pensar em mais nada que não fosses tu, mas as entrelinhas da narrativa crucificam-me à vidraça, à luz filtrada de um sol abobalhado, à velocidade de uma fuga em si bemol. Tu, então, não és mais nada além das letras que escrevo e leio. Que escrevo e leio para sonhar. Para sonhar com as adivinhações além dos edifícios. Além dos edifícios que não me deixam olhar-te. Olhar-te, além da visão; ver-te além das palavras.

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