domingo, 23 de outubro de 2011

Inquietações

Preciso acordar antes que sonhe outra vez. Não que os sonhos mintam ou façam de mim um animal sem faro, ao contrário, preciso acordar antes que estas sementes fecundem e outra vez me penitencie a beira de um amanhecer em queda livre; preciso muito desvencilhar-me dos hábitos antigos e deixar o habitat daquela criança desenhada em mim, soltar-me enfim sem brincadeiras a sério mentidas em cada canto de olho sorrateiro trazendo dos sonhos segredos que só aqueles que lá povoam sabem guardar.
Preciso, então, muito acordar antes que outro sonho prenhe de constelações ilumine para sempre o quarto que muito quero na escuridão das mãos que burilam caprichosas cada centímetro.
Todos os vãos.
Acordar a tempo de ver-te ainda preguiçosa caminhar descalça pela casa, vestir-se sem pressa enquanto finjo sonhar que te beijo para ser melhor ainda o beijo que te quero dar.
Mas é preciso acordar.
Tão precisamente eu possa, preciso te perguntar: foi sonho ou você já foi caminhar? Amei-te tão bem ou fingiste gozar? Brincamos de fazer versos ou acordei antes de sonhar?
Ficou decidido depois, que tudo até aquele momento era sonho e que só a partir daí, dessas inquietações de casa amanhecendo, cheirando de novo a novo café, gestos que procuram potes, bocas que provam ainda nas facas de manteiga requeijões e geleias, pés que se perfumam para calçados apertados pisarem as calçadas apertadas. Só então decidir-me pela realidade, mesmo que de fora não fosse assim nenhuma gravidade e nem apontasse indícios de que mais tarde tão cansados dormiríamos profundamente e nada nos livraria de um sonho que nos arremessasse contra o fundo de outro dia, mais um dia fingindo-me ali pelas seis só para ver-te caminhar descalça, vestir-se sem pressa acreditando que sonho beijar-te só para tornar ainda mais vertiginoso o beijo que te daria agora.




 

domingo, 9 de outubro de 2011

Fuga (ou, das tolices e contradições)

Sinto que não vivo em mim.

Não sinto meus pés caminharem estas vias, nem vejo as cores que se entregam à minha visão; só o desalinho dos seus cabelos contra um vento que não eriça minha pele, mas estranhamente aterroriza. Parece um beijo do inferno. Um suspiro pela porta entreaberta.
Corro abri-la quando batem, mas não é minha a mão direita que torce a maçaneta, tão pouco os olhos que se deparam com outra estória. Recebo, falo, oriento, explico, brigo, emudeço, despeço-me. Mas nunca sou eu quem fica só ou quem os recebe.
Eu me pareço com alguém que não conheço, me pareço com o vazio de uma expressão no escuro.
No espelho não vejo alguém com quem eu dividiria minhas amarguras e minhas alegrias, aliás, nem minhas as alegrias sequer seriam, pois não as vivo e nem minhas amarguras transgrido para socorrer-me um instante. Apenas vivo um dia de ausência, de um corre-corre osmótico, um dia de gestos tão exatamente mecânicos, tão piedosamente carinhosos, mas vivos sem mim, sem quem os vista ou manuseie, sem alguém que lhes deem humanidade plena ou a mais pura animalidade.
Sinto que vivo a vida de alguém sem vida; todos os dias. E sinto que todos os dias esse alguém procura por sua vida, mesmo que não viva em si, mas em mim, mesmo que a sua vida seja vazia, sinto que se inquieta e se aniquila a cada gesto meu, a cada palidez, a cada nova manhã de olheiras e futilidades, a cada segundo que vivo fora de mim desintegrando a vida de quem pensa haver vida nesse eu vazio.

(ouça depois, durante, quando quiser...)



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