Quando abro os olhos e é você quem me vê, o mistério é todo da cor de vigarices e passeia lentamente dentro do escuro que ainda colore a retina; é possível prová-lo pelas mãos ligeiras de quem me furta a ida e a vinda pelas vias de uma vida que não é minha. Quando a manhã se arrebenta repentina, se apresenta sem retoques é você quem pousa na grade tão santa clara clareando as palavras que vou mentir – uma por uma – só porque não sei dizê-las (quando silencio, os manifestos voam rasantes). O primeiro destes manifestos pode ser chamado de Manifesto das coisas que são suas (e que muito bem poderiam ser minhas não fosse pelo preço e pela distância) e atende prontamente como um cão feliz ao receber o dono, abana o rabo histórico numa felicidade de poeira e espasmos sublinhados de urina e suor. Corre entre os aparelhos e os cavalos despachando ilusões pelas encruzilhadas e pede com seu jeito de lobo que fiques de quatro e te prepares para o baque. Por estas horas, os móveis já estão afastados e a platéia não morre dentro da execução alheia, nem há remorso maior que aquele que até então lhe acompanhara o ventre. As coisas que são suas são todas brilhantes e práticas; cordas amarram (mas também enforcam tão docemente quanto é possível a uma corda), sapatos calçam, roupas vestem, pentes penteiam e televisões hipnotizam – coisas que quero. Quero porque não querer resolveria só uma parte do problema, justamente aquela parte que te faz voar pela janela só porque não te quero mais. A platéia aplaude sacudindo as jóias, não, não aquelas, outras, brasileiras de barraquinhas populares. O segundo manifesto - ainda sem nome (se bem que Manifesto das coisas que não tens viria a calhar) - roga aos deuses de todas as praças que os meninos apareçam para a lavagem dos bons fins, o meu bom fim e o seu, um fim de mundo, de linha, récita, livro, um fim descabido que te leva mesmo antes que eu lhe desabotoe a blusa e banhe cada segundo de tanta maciez e perfume e flagre uma ou outra cicatriz. Em dias assim noto que não tens vontade, nem dor alguma, não tens piedade da minha ereção a qualquer hora e em qualquer lugar. Antes, não tinhas certezas engaioladas e nem asas, não tinhas ginga nem samba no pé, não tinhas nada e sequer eras mulher. Tendo o cuidado de avisar, há um terceiro manifesto que decreta: meu nome não pode ser pronunciado, pois sou escravo de outras razões, sou aquele que escreve os teus dizeres e planta tuas maçãs, sou o pai das tuas crias e tua cria sou também, escorro por entre as pernas dos homens e das mulheres, sou a cigarra no verão e um bunker em tempos de inquietação। Quando eras um menino fui teu instrutor nas ruas, levei-te ao leito de tantas mulheres e fui cada uma delas, ensinei-te a arte de fazê-las loucas e enlouqueci dentro de ti sempre que tocado, fui espelho e fui teu rosto barbeado, também fui pequeno e nestes tempos ambos fomos abandonados। Sou a luz e sou o breu; um interruptor acima das tuas decisões, definindo os meios, os feriados e os tons de tuas aparições.
Independente disso ou daquilo outro não me confunda com nenhum livro sagrado, alcorão de páginas arrancadas ou um bhagavad-gita revisitado, também não me surpreenda com videiras secas e vinho imaculado em notas bíblicas de rodapé, tampouco me assombre com esse arrastar pesado de asas machucadas de quem voou sem ter aonde ir.