domingo, 30 de janeiro de 2011

A perdição do seu olhar

Há um olhar perdido que se atira na contramão; é um olhar de longe, de um espaço sem domingos sem feiras e sem amigos, onde não se faz apropriado um aceno nem piscadelas de passagem muito menos que se deseje o corpo de alguém só porque esse alguém também pareça perdido quando enfrenta a espuma do mar e por alguns segundos se lance iemanjá e surja mulher, uma alma tão mais radiante perseguindo outros mares que nos habitam revoltos e investem contra a noite trazendo pesadelos cujas patas se deixam marcadas na poeira ancestral dos móveis, nas camas que só mesmo um gemido alcança quando feito lança perpassa estes corpos aos pés da morte. Mas, não há temor nem rendição, há um clamor de velhas águas noturnas que cochicham junto às guias, por sobre deusas abstratas que no fundo da memória jazem decapitadas. Há um fervor por todas estas águas noturnas que saram nossas pústulas em troca de pequeninos dramas suportáveis. Há um drama em todos os espelhos, por dentro das estórias que não se contam, por entre as contas do terço que não escolhe missa, rindo das anedotas mal contadas, espiando o prazer dos amantes que se banham nas mesmas águas noturnas que para sempre seriam mar não fossem irremediavelmente um jeito perdido de olhar.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Rascunho

Há uma preferência de sol aberto, um olhar de janela encortinada que obriga as mãos em voo calmo a acenarem breves e cautelosas. Há uma ave que não se aninha e que trila um verbo impreciso, uma estória que se agita contada sem muita retórica e quase nenhuma rima.
Quando chove, porém, há uma vida que se revela em ondas, o balé das plantas que na rega produz um alvoroço de bichos tímidos que correm avisar o tempo de outras preguiças; as abas do chapéu desfalecidas nas águas, o cochicho que nem é mais prece de madrugada, mas uma vontade de vozes trazendo café, leite e pão, também suspiros de imensidão desenhada depois das janelas.
Há um tempo acocorado junto à criação encorpando-se de morte; um tempo atento às passadas que madrugam certas de que não vamos semear olhares e nem despertar desejos secretos. O que se rompe, então, o que escancara a fissura do tempo é este olhar que escorrega desde aqui onde me intrigo e desmaio dentro de expectativas desbotadas, suspensas e plásticas, até a nostalgia que nada mais rascunha, tampouco abre as portas.
Há uma noite que se espaça na fenda, uma mulher triste que escreve versos felizes num faz-de-conta que aflito conta os segundos do bibelô sobre a mesa, a toalhinha de renda manchada na borda (um pingo de café tão quente), as notícias de que o sol já vem. Há um corpo a seu lado e ao meu lado também; há o desejo afoito de lhe estocar tão fundo e tão violentamente que chego a pensar que é morte o pensamento e que pensar é a ferida que apalpas na hora de coar o café e depois, sem querer, derramá-lo sobre a borda da toalhinha de renda.
Há por dentro destes vazios um ilusionismo que nos traz à claridade de um altar, como presas indefesas de uma crença que me faz sangrar. E é sangrando que estico as cercas, cuido de não criar motivos e esfrego nos olhos um vento de solidão infinda. À porta, o cheiro das coisas da manhã me impacienta, manhã de mais um dia, mais um dia de goles em seco, de apelos aos deuses moribundos esquecidos junto às relíquias dos baús, mais um dia de ir e vir pelos corredores, de abandoná-los às dores dos luzires que de fora lançam um querer incomum, um caminho que sai da porta e se joga contra o mundo, um caminho de quedas cansadas e de um gosto morto nos lábios, um beijo de anjo, uma insinuação escorrendo sobre o seio; a gota de café, a borra no coador, a adivinhação de um suspiro tão longe lembrando os cacos de um bibelô no chão.

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