quinta-feira, 30 de abril de 2009

Uma janela para sempre

(para alguém que se saberá)
Como em qualquer outra manhã você vai à janela, mas ao contrário do que habitualmente vê, vê que não continuo mais pensando em você, não que eu tenha desistido, é que um cansaço tão denso, tão intenso, acabou por vencer-me, e o que você olha não é mais a mesma cena tão familiar, você vê apenas a luz e o caminhar das pessoas, o farfalhar dos passos sobre o outono, mas não vê a manhã de fato e nem o caminho, não me vê folheando os jornais ou pedindo mais um café até que você apareça e peça o seu com leite e eu te olhe como em todas as outras manhãs como se a visse pela primeira vez, lembra? Vocês discutiam a impermeabilidade de alguns escritos do Cortázar e ouvi aquilo tudo tão atentamente que nem me dei conta de participar depois de um jeito tão ávido; queria impressionar, afinal vocês discutiam com tanto entusiasmo e conhecimento. Você não percebe, mas a manhã sequer está ali, em seu lugar um azul desbotado quase mortificado nas gazes de uma cerração esgarçada, e dentro disso movo-me sem pensar em você e isso é tão estranho quanto acusar a manhã de abandono, pois se não penso é porque estou mais morto que a esperança amanhecida feito pão de ontem, migalha, sem eira nem beira como naquele encontro, falamos de antigos namorados e de como fazíamos amor, te achei tão linda e tão nua vestida de cores calmas, me achei tão calmo dentro do paletó e por detrás da barba mal feita, te achei tão doce falando de bolos, tão culta escrevendo livros, te achei quase tudo e, no entanto, era noite e a noite sempre teima em dizer-nos que até mais, amanhã a gente se vê nem que seja por um minuto, mas o minuto de uma mulher surpreende tanto mais que esta manhã que nem existe mais, mas que você insiste em olhar pela janela como se ela ainda lhe trouxesse o meu jeito de pedir o meu com açúcar e o seu com leite e adoçante. Quem sabe um pintor resolvesse o vazio desenhando em frente à sua janela um banco de jardim no qual eu me sentasse todas as manhãs esperando que você a abrisse. Quando você abrisse a janela eu te acenaria não um adeus, mas um “vem cá”, tenho aqui dois cafés, um com leite, e uma vontade louca de que a janela se abra para sempre.

domingo, 12 de abril de 2009

Crônica de um naufrágio anunciado

Atrai-me o drama de um adeus no convés; atrai-me mesmo se for às escuras, por sob os cobertores, um adeus contrito, quase prece, soluço de cores piscando na insistência dos olhos abertos dentro da cerração, quase do outro lado quando a manhã violentamente explode com todas as malas prontas e com todas as dúvidas ainda por serem dirimidas, algumas escondidas nas dobras dos lençóis, outras mais robustas afastando os móveis, criando situações desagradáveis, destemperando humores, asfixiando com palavras caladas, apressando os gestos e o elevador. É quando nos esbarrões pelo apartamento descobre-se que não há mais poesia quando nos tocamos, mas uma espécie de pudor epidérmico ressequido em nossos corpos velados, nada mais se revela além da abundância das despedidas em tantas manhãs minimalistas, nas quais um suco de laranja, fatias de pão integral, documentos sobre a peça que você insiste chamar de arca, as chaves do carro sempre no mesmo lugar, tudo exatamente a mão, tão pasteurizado e em comunhão com a mesmice dos sorrisos e dos sabores. Depois, o caos das ruas, o olhar maquinal que atravessa os minutos de um instante até o outro carregando um fotograma desfocado, uma mudez fixa e virtual entre as indecisões de um caminho tão familiar e, no entanto, tão desconhecido. Lembrar ainda, que dali a pouco nos veremos dentro das órbitas alheias transfigurando a mudez em monossílabos aquiescentes e prestações pouco vivas, sim porque tudo voa e se espatifa mais a frente quando nos dizemos adeus assim que nos encontramos nos conveses dessas nossas viagens e desaparições. Tudo me atrai e trai-me tão intensamente que sangro meus sonhos num último beijo antes de deitar, antes que o tempo me converta e eu morra hoje como ontem, acenando do convés de uma embarcação que quando parte já é tão tarde como nunca.

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