sábado, 21 de março de 2009

Um toque de leitura

Não quero que venhas depressa, mas nas pontas dos pés. Assim, feito bailarina. Quando chegares bem perto, quando enfim assumires as proporções de mulher recortada sobre um fundo disforme, não me furtarei ao toque na tua cintura num pax-de-deux que tanto me agrada e atemoriza. O livrinho que carrego, deixarei para que leias, mas não em momentos de silêncio, leia-o em meio à turba dos lotações, no momento do pênalti desperdiçado ou quando das execuções, leia-o em voz alta aos berros de bezerro desmamado, em meio às brigas de casais, nos terreiros de nossas áfricas domésticas, sob as goteiras das marquises enquanto o ônibus não vem, mas sim, me desculpe, onde estávamos mesmo antes do livrinho que carrego e que gostaria que lesses sem amargura mesmo quando à morte de alguém tão querido, mesmo que os teus homens gozem tão antes de te arrebentares contra a dor incomunicável de um prazer medonho e cego fora da cama, por entre as plantas, contra a porta, escorrendo melancólico feito um adeus. Há também um adeus em cada página do livrinho. Perceberás que são adeuses sem ressalvas, secos e dirigidos às mulheres que me abandonaram antes da minha felicidade provisória, aos idiotas que arvorados na história removeram minhas tripas mais açougueiros que clínicos deixando um vão, um talho daqui até o fim da nossa pouca sorte manquitola escorada em arrimos de pouca salubridade. Se estiveres levitando - minha doce bailarina - saiba que repousarei o livrinho como de costume, naquele banco de jardim (dizem que ali casais mascarados fizeram juras aflitas num carnaval cuja eternidade duraria até as cinzas, depois viriam outras páginas tingidas de uma morte tão natural que escrevê-las seria como esta dança que não canso de desejar). Se não o encontrares é porque alguém desavisado o terá levado junto ao peito, protegendo-o da chuva de projéteis perdidos que se acumulam no céu a espera de passantes sem nomes, mas de nada importará, pois não terá nome além de livro, nem feições além das suas, não terá sequer aspirações além daquelas comuns às páginas viradas, fixadas sobre um fundo de paisagens em movimento.

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