domingo, 27 de março de 2011

Da fluidez ao pó


(A mesma estória sempre. A mesma sucessão de estereótipos. A mesma mesa de cartas marcadas. As mesmas situações. Tantas diferenças)


A vida flui em meio a acontecimentos tão comuns quanto imprevistos, tão densos quanto superficiais. A vida vai da expectativa de que alguém apareça logo ao nascimento (de preferência alguém que traga presentes) até a primeira e avassaladora paixão (é quando morremos pela primeira vez, nem todos, mas a maioria). A vida vai dos natais da infância (sim, porque depois se tornam mais um daqueles encontros obrigatórios nos quais nos comportamos tão bem até que o álcool faça efeito e resolvamos denunciar as mazelas do mundo e a hipocrisia dos presentes) ao primeiro e aterrorizante dia de aula quando somos entregues aos cuidados de um sádico em pele de cordeiro que nunca vimos mais sorridente e ainda esperam que não entremos em pânico; vai da classe cheia de meninos esquisitos à descoberta das meninas ainda mais esquisitas que sem mais nem menos denunciam nossos olhares aos bedéis e algum tempo depois nos arrastam para dentro de um torpor suarento e dolorido; vai do futebol na rua sob sol, chuva e reclamações à constatação de que nossa compleição física é mais indicada para carteados descompromissados; de um presente recebido em um daqueles natais ao primeiro beijo; de uma esperança boba de que a prova nem vai ser tão difícil à descoberta do sexo (e de que as provas, às vezes, são realmente fáceis, mas o sexo nem sempre é possível); vai de uma caminhada com os amigos até a outra rua à primeira balada invadindo a noite desconhecida; vai de uma canção ao redor da fogueira ao silêncio tão desejado depois dos quarenta; do vestibular ao primeiro chefe (não necessariamente nessa ordem); vai das minhas fraldas para as fraldas da minha filha e daí às fraldas do meu neto; vai da primeira demissão à última prestação que nunca chega; das conversas fiadas à dificuldade de fazer um convite ou ao temor de ser mal interpretado quando as mãos descobrem que por sob as roupas outro universo tão mais úmido e misterioso transforma as conversas num silêncio porque indizíveis; vai de uma surpresa física que lhe faz vibrar por inteiro à outras que tanto decepcionam - pés nem tão delicados, dentes nem tão alinhados e, finalmente, rugas, calvas e dores lombares -; vai das opções que a princípio são sugestões ou imposições às concretizações dos ideais que, na verdade, mais se consomem do que se consumam; da mulher à luz, da luz aos primeiros passos, dos primeiros passos aos tombos, gazes e esparadrapos; vai da castidade ao primeiro orgasmo solitário; da prece ao espaço povoado por dragões e românticos astronautas que teimam em afirmar que a terra é azul. A vida vai de muitos lugares para outros tantos e parece não chegar a lugar nenhum; vai da fluidez ao pó como um bólido que se espatifa na reentrada.

domingo, 13 de março de 2011

O céu de Seattle

O céu não sabe de si. É preciso que alguém o olhe e compreenda que a imensidão de tons azulados se precipita incorpórea para agigantar-se ao entardecer em róseos imaginativos de um sol vindouro. Quando esse alguém é você, o céu de Seattle se torna mais intenso e se colore de luz e festa e é quando o céu se descobre e resolve que ser o céu requer imaginação e o céu então se revolve em nuvens algodoadas misturadas à eletricidade e à redenção e se precipita cinza numa chuva de amanhecer. O céu de Seattle sabe de si quando você o olha procurando estrelas e caminhos.

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