sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

“[...] não sei como perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem exceção, acabavam ao fim de sessenta segundos [...]”.
As pequenas memórias (p. 59)


Saramago é um dos maiores escritores de todos os tempos e de qualquer língua. Sua pátria, sua militância, sua vida são os livros que escreveu e os escreveria com a mesma genialidade fosse o seu idioma qualquer outro. Falaria de outras realidades e, muito provavelmente, de outros recantos, mas o faria com a mesma intensidade. Sua pátria escrita é um sem tempo de humanidade.

terça-feira, 8 de junho de 2010

ENTRELACES

prá você

Quando no meu sonho encontrei as gavetas vazias foi porque no seu sonho você já tinha ido embora levando todas as roupas.

Enquanto desse lado do mundo eu remexia o escuro do quarto buscando alguma lanterna entre as memórias, do seu lado tudo vinha à tona entre espumas de esperança e longos caminhos pedregosos.

A circularidade da vida nos foi carregando cada vez para mais longe, mas nem ela própria foi capaz de perceber que quanto mais longínquo dentro do circulo mais próximos ficávamos. E tão próximos que nossos sonhos se confundiam; sonhávamos os sorrisos um do outro, sonhávamos as dores e os percalços e nem mais sabíamos quem se levantava pela manhã e lavava o rosto num desencontro de visões.

Completos e desiguais temíamos que as noites nos dragassem como restos. Não éramos restos, afinal. Mesmo que não soubéssemos, a cada dia ficávamos mais próximos e tão mais perto que os sonhos passaram a fazer parte do dia já claro, dos afazeres e de uma preguiça intensa que se instalava a cada novo fim de tarde.

Ainda não sabíamos, mas não amanhecíamos mais sozinhos, nem íamos à rua sem que o guarda-chuva de um protegesse da chuva o outro; não havia como atravessar as avenidas sem que não nos déssemos às mãos. E tudo sem fazer ideia de que já íamos tão perto.

Em certas madrugadas vagávamos pela casa um do outro com medo dos sonhos e até nos encontrávamos nos copos de chá morno sem saber que os lábios nas xícaras eram os nossos; sequer pressentíamos as cores do seu batom nas minhas toalhas ou as minhas secreções nos seus lençóis. E cada vez mais próximos.

A água de um banhando o corpo do outro, as colorações dos dias de um chamejando nos gestos do outro e um sem fim de interpenetrações loucas que derrubavam objetos quando não havia nada ou ninguém, mas insistiam em escapulir do sonho e bulir no círculo que continua em si mesmo para uma eternidade de desenhos sobrepostos e, do mesmo modo, bulir a vida, essa sequência de eventos que se adicionam e que se desmancham quando a ausência de um é a falta do outro.

Se na sua realidade o presente é um sonho, saiba que na minha vida o presente foi sempre você, não um presente qualquer que sonhamos depois de meia dúzia de cervejas, mas um presente que se conjuga amando.

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