domingo, 23 de setembro de 2012



Atalaia
(ou, para não dizer que não falei de Aracaju)

Há entre o azul e o outro tom que ondula mais abaixo um muro e só
Um muro erguido de água, sal e visão
Um salto de olhar que longe vê ilusões de mar alto
Sobressalto anoitecendo luas
Clareando olhares admirados de mar entre as cores que abismam paredões
No olhar requebros escorrem pelo canto da boca entre uma e outra loira
São morenas, brancas, pretas em desfile e desvario de banhos, moças roliças suando sabores de gestos multicores entre o azul e o outro som dos pássaros que espiam e tudo o que há é olhar e solidão contra o fundo de areia que pisas no mesmo instante em que brumas róseas te surpreendem desenhando verões
E dentro do outro tom de ondas caleidoscópicas guardam-se peixes, baleias e sereias de eras pretendidas pelo tato de quem se perde feliz num tempo de imensidão aquista às vistas de quem se enovela à tarde erguida de água e olhar
De tanto olhar torno-me elemento na tela
Na tela de tanto mar.

domingo, 8 de julho de 2012

Sonhando-te (I)


O gesto e o querer
Atira-te princesa de borrões à festa; atira-te zodiacal sobre as doze casas do céu e ocupa-te da sorte rabiscada ainda na incisão. Sonha-te Jezebel selando destinos, Rapunzel amante concedendo a visão, mas sonha-te vidente; sinta-te pecado em cada suspiro e tenha-te casta para o teu amor. Erga-te decidida Héstia de todo querer e faça cumprir-se a jura do homem que te inspirar segredos de amor e inspira-te Danu não centelhas, falos, força bruta, atalhos, mas sapiência de mãe; fertiliza-te das eras e gera-te cósmica. Abandona-te serena ao sono e sonha-te dama, primeira bailarina num sissone alado. Acorda-te e da realidade fria retoca-te para bailar com a vida sorrisos de mulher.

domingo, 17 de junho de 2012

Aprendiz

(deitar-me e ler-te, então)
Quero teu corpo como a um livro que eu escreva não com as palavras que nasçam em mim, mas com as súplicas dos anos em que deixamos de sonhar; talvez não queira escrevê-lo, mas lê-lo em segredo de criança, ouvir-lhe as entrelinhas sussurradas, desvendar-lhe os versos nas pontas dos meus dedos literatos e pacientemente participar de uma ode a dois na qual tu gemas versos de indelicadezas sensuais e meus ais pronunciem o desejo de mais uma página. Quero escrever-te como a um jornal diário dizendo-te além do amor todas as paixões em seções inesperadas, paixões escritas e inscritas na imensidão que olhas perdida quando a pontuação evidencia pausas e respirações, quando os parágrafos altercarem não ideias, mas a cidadela sitiada entre os montes da minha inspiração. Também preciso que me escrevas no vão retido tênue da alma-ave migratória que fazes voar todo mês, nave-mãe de sóis criados à sorte dos dizeres descabidos, poema em si despido de palavras exatas, incontida senhora das horas em que me amarras à sombra de tuas coxas poderosas e me sufoca com teus sufixos sulcados às minhas costas. Então o recuo ante o final; mais um capítulo ao tantra, mais um paraíso de algodão amarfanhado pelas mãos, mais um tremor espalhando letras pelo chão.

domingo, 3 de junho de 2012

A Tempestade (IV)

(a perspectiva do encantamento)
Preciso-me antes que desabem os céus que desenhei na parede suja dos fundos. Quero-me tão pleno antes que o desenho relampeje e se esvaia em alto-relevo tocando-me o plexo num desespero de perspectivas revoltas que lambem a atmosfera buscando-me o gosto, o sabor que talvez perdido macule o gotejar andino daquilo que se torna rio e me afoga mesmo antes que te respire as fragrâncias por entre as pernas. Sei-me em chamas maldizendo a solidão daquele fundo de tarde dizendo-me com todas as letras mortas que o amor é um grande desaforo, uma brincadeira sem retoques nas quais os brinquedos são frágeis e se arrebentam ao menor descuido. Chamo-te aos gritos e quem me vem acode ao copo, transborda-o. Escorro-me pela borda, saliva, seiva, chuva, lágrima em segredo desfeito no borrão da sombra e com o dorso das mãos sobre os olhos procuro visões que inventem outras estações que nos vistam nus.

Foto: Pietá nº 1 de Jan Saudek (1971) disponível aqui 

domingo, 13 de maio de 2012

A ceia do imaginário

Havia luz e uma janela suficientemente ampla permitia algum devaneio; algum prodígio que em órbita colocasse a tarde e todos os sentidos que te acarinhavam fartos e todos os sabores que te lambiam a vulva.
Havia luz o bastante para afetar-me a visão com os caprichosos contornos do seu corpo enfermiço, havia fixação na prontidão física que a mantinha casta, puta abandonada em plena ceia, delicada cria sem redenção.

Tela: "Menino mau" de Eric  Fischl

domingo, 6 de maio de 2012

PARSIFAL 84

Ouçam de Santana um oitenta e quatro arpejado num clássico de canhoto faminto; 
Xangô gregoriano auscultado nas fábulas do bares.
Ouçam o latido do cão danado que em silêncio ateia fogo ao colosso de Orwell e nas magias do municipal vigiado a cada drama.
Ouçam todos os detalhes de sua composição sonoro-arquitetônica, que vibra em todos os nomes da face do homem que Wagner chamou Parsifal.
Ouçam o capanga da arte que se move magro entre árvores de sombras desmaiadas,
por entre descendências bêbadas que conspiram versos e sons, enquanto o instinto espia o silêncio.
Ouçam de Santana as óperas imaginadas e tão docemente irradiadas pelos olhos do
cão amigo
Xangô
Parsifal.

Tela de Jean Delville: "Parsifal"

domingo, 29 de abril de 2012

Você ainda fuma seu primeiro cigarro logo ao acordar?

Puxo as cortinas como sempre e como sempre revisito palmo a palmo o plano emoldurado da janela. Abro-me para as cores repetidas de outro dia tão igual, tão calorento quanto qualquer outro que eu tenha vivido por dentro, por entre todos os vazios malcheirosos de seus mortos incontáveis, rente à falta de habilidade daqueles que me esbarram desconhecidos, mas que se comovem caso não consiga espiar pela moldura mais uma fresca sensação de dia seguinte, recomeço zumbido nos sons de um sempre matinal entre preguiças e saudades. Volvo para um mar de levezas que garoam e coo o café que me acorda para outras visões; são calmarias que acalanto sozinha sentada a um dos banquinhos da cozinha e que devoro depois. Também me derramo no banho e transpiro tantos planos consiga até me arrepender pela demora; não me culpo muito tempo, mas o suficiente. Nem se trata de uma dor aos domingos ou em plena segunda-feira de sol derretido por todos os poros, nem de espezinhar o resto dos dias da semana como baganas que degustei no escuro e depois apaguei descuidada. Não se trata mesmo de acordar com os pulsos cortados e constatar que lá fora as pessoas continuam sorrindo maquinais e que eu também lhes sorrio como que arrependida e sem tempo, como se não tivesse notícias de quem um dia puxou as cortinas como sempre e como sempre me desejou bom dia.

domingo, 22 de abril de 2012

A tempestade (III)

O encontro
 
Aquilo que se entreabriu viu 
em meio ao cinza das pinceladas qualquer coisa sorrindo para si, dizendo dos lilases
contidos
ainda por surgir daquele emaranhado de sobressaltos e esbarrões, chiaroscuro de corpos num espaço de trovões. Abriu-se do sonho gerânio desavisado transeunte inesperado em meio ao torvelinho de fadas e divas; abriu-se mais que acordado na esperança paleácea de que seus passos outra vez pisassem o corredor frio e fechasse as janelas antes da tempestade. Poderia virar-se tranquilo e deixar que lá fora tudo marulhasse convulso, pois ela já estaria aconchegada e nele a pele pérola nua vibraria dilúvios próprios da vida.

Foto: Piotr Kowalik

...e quem sabe, a calhar.

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