(anjos e furacões)
Os olhos atentos no horizonte agora cheio de anjos feios e furacões em nossa direção, ainda assistiriam a própria dor. Ainda saltariam de suas órbitas regulares e procurariam abrigo em sistemas inabitáveis. Volveriam à dor lancinante de se verem lacrimosos, arrancados de cena e de qualquer possibilidade de novas visões. Enquanto não nos abordam encho a cara de uísque contrabandeado, caro e perigoso, sem perder de vista os dois que dormem no quartinho ou, quem sabe, bem acordados planejem fugas ou gargalhem espantando a imobilidade das horas. Talvez ninguém acredite e nem vigie a escotilha ou mesmo lance âncora na esperança de peixes maiores; talvez eu e você, mergulhados na lama do mangue, nos amemos até que o horizonte suma e não deixe rastro algum de seus comensais. Mas sem perdê-los de vista. Eles mesmos, depois de crescidos, nos olharão como agora olho o horizonte de anjos feios e furacões, eles mesmos nos tocarão sem pudor e quando se fartarem nos arremessarão à imensidão destas águas sombrias; melhor aquietar o facho deste lado do sonho, manter os poros respirando e as promessas por sob o celofane dos anos. Daqui a algum tempo abro as portas, permito que saiam quase cegados pela luz do meio-dia e os violente antes que a lama me entupa com seus odores e sentinelas.
(a perdição do meu olhar)
Tenho mesmo a você e você talvez nunca me tenha olhado como se olha um monstro, e não que me sinta um monstro, mas os crio no quartinho desde que eram girinos esverdeados, depois perderam o viço e a cor; seus sexos se tornaram evidentes e foi quando os engaiolei. Chorei muito, especialmente nos primeiros dias quando sequer sabia o que queria, além de que parassem de se machucar. A perdição do meu olhar era vigiá-los por horas espiando pelas frestas até que um dia, quando de relance volvi o corpo na direção contrária e notei o horizonte carrancudo; só depois compreendi que eram os anjos e um furacão que então passou a se formar todos os dias. Naquela mesma hora achei tudo diferente, mas como o tempo não permitia, nem liguei. Ocupei-me das preces e das refeições durante o dia e de você nas outras horas. Você não se preocupava com o tanto de olhar que eu perdia todos os dias, jogado por cima da baía como que buscando contornos do outro lado, ou quando gritava de madrugada e acordava num sobressalto jurando que todos os astros mortos agora recitavam versos estúpidos e se alinhavam no horizonte. Enquanto tudo remexia nossas vidas, eles cresciam.
(a arquitetura dos dias)
Quando resolvemos que já era hora e que o horizonte iria aonde quer que fossemos, morar no barco foi mesmo a melhor solução. Se não nos livrássemos daquelas caras horríveis e daquele vento que baforava a cada segundo mais forte e fedorento, se não os colocássemos do lado que melhor proporcionasse suas pinceladas permitindo que as horas fossem se arquitetando em papel e dias abandonados mesmo que pelos cantos, tudo ficaria por conta das habilidades que sequer sabíamos se possuíam. A chance seria vê-los aprender outras coisas, falar a mesma língua quem sabe, afinal depois de tantos anos já se pareceriam o bastante com cada um de nós, exceto pela cauda.
(o sorriso das pedras)
Se ainda houver tempo e caso você ainda não me tenha entendido, é simples. Casamos muito jovens e como ainda não tínhamos despertado para todos os prazeres, passávamos horas passeando e nestes passeios as descobertas eram frequentes; descobríamos de tudo, desde pedras que sorriam com o toque delicado das tuas mãos, até anéis de minúsculos contornos que adornariam os dedos de seres que só víamos de relance e quase a beira do sono profundo. Num destes passeios ouvimos o coaxo choroso de dois seres pequeninos perdidos entre as pedras que te sorriam. Corremos crianças e na volta éramos adultos atormentados com o olhar profundo daquelas criaturas; decidimos ali mesmo criá-las como a dois animais, mesmo que, conforme revelado algum tempo depois, começassem a imitar nossos gestos e nossas destemperanças.
(do caos à lama)
Da terra saímos fugidos, tangidos por um povo caprichoso que os imaginou dois diabinhos. Não era, nem nunca foi naquelas paragens costume criar demônios, e como todos estavam irredutíveis, irremovíveis da crença estúpida de que nossos animaizinhos eram íncubos a mando do próprio excomungado, subimos a bordo também acreditando que um dia eles nos comeriam vivos e se, um pouco piedosos até em razão do bom e do melhor a que sempre tiveram direito, nos matariam antes da desossa. Mantê-los sob vigilância tornou-se profissão de fé, se bem que matá-los deveria estar na pauta mais vezes. Sabíamos que mais cedo ou mais tarde selariam nossos destinos e por sabê-lo, íamos a terra fartamente, mangues de lama mal cheirosa e cheia de caranguejos vermelhos. Fazíamos amor ouvindo o ruído da lama espremida entre nossos genitais e mesmo a certeza de que éramos observados não nos arrancava um do outro. Na verdade, a sensação era muito boa, quanto mais profunda, mais fria e densa era a lama, o que dificultava o vai e vem de nossos corpos e nos deixava ainda mais agoniados. Depois de certo tempo nem o odor horrível nem os olhos que espiavam, chegavam a incomodar; cessávamos somente por eles e nem imaginávamos o que era amor.
(a beleza da criação)
Os anjos amanheceram mais próximos do que nunca naquela terça de carnaval. Estávamos a uns dois quilômetros da praia e mesmo assim a festa parecia bem aqui ao lado. Entre fogos de artifício, cantorias e batuques, a cara imensa dos querubins sentenciava: era hora. Os furacões, então descobrimos, eram sopros angelicais que fizeram voar alguns pertences do tombadilho, lembro que aquele avental usado para tratar os peixes voou na direção da orla e imaginei que quem o encontrasse não entenderia as razões de seu voo, mas apesar disso não hesitaria em vesti-lo e sair à farra das batucadas ainda acordadas. Surpreendi-me pensando estas tolices e como que, finalmente ligado ao dia, notei que você rezava. Os dois monstrinhos gritavam ensandecidos e os anjos pousaram lentamente. De perto eram belos, tão belos que não lhes pude olhar muito tempo, tão belos que as suas orações se transformaram em profundezas de palavrões e versos sem sentido, tão estúpidos como aqueles que eu recitava depois dos sonhos e deixavam minhas manhãs como que se fossem frutas podres que eu tivesse que saborear. Um dos anjos desceu ao quartinho e voltou com os dois, um de cada lado e, exceto pelos rabos, quase não os reconheço. Eram dois seres lindos, um macho e uma fêmea, cada qual com quase dois metros de altura e cada qual cercado por um halo luminoso que me fez desviar os olhos. Você não orava mais, nem xingava, você, na verdade, com um par de olhos extasiados cegava-se pouco a pouco. Antes do golpe vi ainda o filete de sangue que lhe escorreu do canto do olho esquerdo.
(ancoradouro)
Quando voltei a mim a embarcação estava abandonada às ondas e tinha mil anos. Os fantasmas que a habitavam lançavam redes esfiapadas a cata de peixes extintos. Eu o sabia, pois já nos meus tempos de vivo, os peixes escasseavam a cada maré. Andei pelo convés sem assustar-me com os pobres zumbis maltrapilhos que se esforçavam na puxada dos frangalhos. Um ou outro me olhava com aquilo que seria um olho e um ou outro se atirava ao mar. Foi quando percebi que o único fantasma a bordo era eu e que aqueles infelizes eram viventes tangidos pelas ondas que em verdade eram as asas gigantescas dos anjos que há mil anos me esfacelaram o crânio. Foi quando aturdido notei que as redes eram nossas roupas e que seu corpo tão alvo como a lua que nunca mais vi, servia de âncora para fixar cada desejo de arrebentar-se na praia. No fundo do túmulo, imerso na mais completa escuridão, uma escuridão inimaginável para quem nunca foi enterrado sob sete palmos, restou-me a eternidade dos lábios balbuciando que jamais deixariam de sorrir para as pedras, tampouco para a sua criação.