domingo, 18 de dezembro de 2011

Imprecisões

(ou déjá vu)
Acordava bem cedo, fazia café e tomava uma xícara.
Depois voltava a dormir e sonhava. Sonhava que acordara cedo, fizera café e que tomara uma xícara. Acordava com o café pronto e uma xícara fumegante sobre a mesa e pensava como aquilo seria possível. Não o fato de acordar e encontrar o café já pronto e servido à mesa, e nem porque sonhara com ele próprio coando o café na luz morna da cozinha ou porque olhara pela janela o mundo ainda dormindo enquanto tomava um café, mas porque não havia sentido na disposição dos objetos e mesmo dos quadros nas paredes, porque não fazia ideia daqueles cômodos, porque não entendia como pudera comprar um tapete tão feio, porque não sabia aonde viera parar desde que acordara direto de um sonho no qual acordara cedo e encontrara a casa de sempre, com os objetos cuidadosamente escolhidos mundo afora e dispostos de modo a contarem uma estória, a sua, ou a estória de imprecisões colecionadas, sensações de tudo outra vez. Porque não sabia aonde viera parar desde que acordara direto de um sonho no qual acordara cedo, fizera café como fazia todas as manhãs, duas colheres rasas de pó, duas colheres rasas de açúcar, pouco mais de 300 ml de água fervida, algumas idas à janela enquanto a água não fervia e olhar um lado e outro da rua ainda às escuras. Porque não sabia aonde viera parar desde que acordara direto de um sonho no qual acordara cedo, fizera café e tomara uma xícara como em todas as manhãs e como em todas as manhãs olhara os objetos comprados por aí, por mundos coloridos que se faziam em costuras perfeitas e arremates que só as mãos de uma fada, olhara os quadros nas paredes sem entender o que faziam ali justamente sobre a impressão de outros quadros que não se ajustavam às sombras de um dia ainda por amanhecer, ainda por escapar do sonho, ainda por transformar-se em aroma de café.

Pintura de Lucas Mucarzel

domingo, 4 de dezembro de 2011

A vida, um dia

A sorte ao norte derivou sensatez e bocados doces de algodão nos céus
Volvi ao sul, às paginas insertas de sangue nas bancas
(vi que ao fundo, no fundo daquilo que procurei tatear, mas que tão longe me restou olhar como se olham as fotografais, vi que também procuravas por algo, alguma maçã mais vermelha, meias para o inverno, um inferno revoando a queima-roupa, vi que as datas se corrompiam e que não havia mais armários nem guarida, e vi que procuravas aflita a sensatez de um norte - à deriva)
E pedi um jornal de qualquer dia, pois não interessavam as notícias, mas o quanto de tinta, papel e preguiça um do outro guardaríamos.


Foto de Giuseppe Savini encontrada em Illustratus 
 
Agora vejam e ouçam...porque o tempo é um.


domingo, 20 de novembro de 2011

Restos de um pesadelo já pela manhã

Deixei que a mão pousasse seus pássaros de inquietação na estampa sobre a coxa
e adivinhei calores de um corte preciso
Um corte preciso espalhou-me à vista pelas bancas
Depois correu os olhos nos nacos úmidos resolvendo que as vísceras tornar-se-
iam ilusões
Venderam-me em porções, filés, pedaços inteiros
Chamaram-me pelo preço e o que sobrou
Fartou cães, catadores e pássaros inquietos.

Fotografia de Vladimir Fedotko

domingo, 6 de novembro de 2011

Cores, contornos e outros mundos

Title #0
De ontem, lembro de um chão recortado e dos rastros deixados sem intenção, lembro de alguma precisão em retalhos e caminhos quase desenhados sem ter para aonde ir. De ontem, lembro de uma profundidade cega, um tormento de cavalos à baia e garotos entrincheirados por sob saias frisadas e presenças quase tão frias quanto mortas e mesmo sem demora, a vida parecia um motim levado a cabo nas naus levadas por nossos sexos. De ontem, lembro de um sorriso calado por sob o abajur da sala, uma incipiência pouco abandonada e um minuto de garantias escancaradas. Lembro das canções de Marvin Gaye e quase saberia cantá-las, mas ontem mais saberia já que hoje sou velho demais. Ontem, todos os sonhos tinham cor e se revelavam à cabeceira, traziam corpos de uma doce agonia e manhãs retocadas de sol. Lembro que minhas aventuras tinham tons de ventania e que minhas romarias prescindiam de deus, já que sê-lo era um meio de prosseguir. De ontem também trago cartões das cercanias e ilusões nuas de quem não se vê; de ontem ainda um escuro de cravos, rosas e juras, e outros lados proibidos em cujo frescor habitavam as tardes e as ninfetas e a suspeita de que sob tão pouca vigilância era Janis e não Maria quem nos paria pelas bandas de uma sentença inaudita.
**
Texto originalmente publicado no blog "Muros de vento" em parceria com a ilustradora Vera Basile
...e por falar em Marvin Gaye...


domingo, 23 de outubro de 2011

Inquietações

Preciso acordar antes que sonhe outra vez. Não que os sonhos mintam ou façam de mim um animal sem faro, ao contrário, preciso acordar antes que estas sementes fecundem e outra vez me penitencie a beira de um amanhecer em queda livre; preciso muito desvencilhar-me dos hábitos antigos e deixar o habitat daquela criança desenhada em mim, soltar-me enfim sem brincadeiras a sério mentidas em cada canto de olho sorrateiro trazendo dos sonhos segredos que só aqueles que lá povoam sabem guardar.
Preciso, então, muito acordar antes que outro sonho prenhe de constelações ilumine para sempre o quarto que muito quero na escuridão das mãos que burilam caprichosas cada centímetro.
Todos os vãos.
Acordar a tempo de ver-te ainda preguiçosa caminhar descalça pela casa, vestir-se sem pressa enquanto finjo sonhar que te beijo para ser melhor ainda o beijo que te quero dar.
Mas é preciso acordar.
Tão precisamente eu possa, preciso te perguntar: foi sonho ou você já foi caminhar? Amei-te tão bem ou fingiste gozar? Brincamos de fazer versos ou acordei antes de sonhar?
Ficou decidido depois, que tudo até aquele momento era sonho e que só a partir daí, dessas inquietações de casa amanhecendo, cheirando de novo a novo café, gestos que procuram potes, bocas que provam ainda nas facas de manteiga requeijões e geleias, pés que se perfumam para calçados apertados pisarem as calçadas apertadas. Só então decidir-me pela realidade, mesmo que de fora não fosse assim nenhuma gravidade e nem apontasse indícios de que mais tarde tão cansados dormiríamos profundamente e nada nos livraria de um sonho que nos arremessasse contra o fundo de outro dia, mais um dia fingindo-me ali pelas seis só para ver-te caminhar descalça, vestir-se sem pressa acreditando que sonho beijar-te só para tornar ainda mais vertiginoso o beijo que te daria agora.




 

domingo, 9 de outubro de 2011

Fuga (ou, das tolices e contradições)

Sinto que não vivo em mim.

Não sinto meus pés caminharem estas vias, nem vejo as cores que se entregam à minha visão; só o desalinho dos seus cabelos contra um vento que não eriça minha pele, mas estranhamente aterroriza. Parece um beijo do inferno. Um suspiro pela porta entreaberta.
Corro abri-la quando batem, mas não é minha a mão direita que torce a maçaneta, tão pouco os olhos que se deparam com outra estória. Recebo, falo, oriento, explico, brigo, emudeço, despeço-me. Mas nunca sou eu quem fica só ou quem os recebe.
Eu me pareço com alguém que não conheço, me pareço com o vazio de uma expressão no escuro.
No espelho não vejo alguém com quem eu dividiria minhas amarguras e minhas alegrias, aliás, nem minhas as alegrias sequer seriam, pois não as vivo e nem minhas amarguras transgrido para socorrer-me um instante. Apenas vivo um dia de ausência, de um corre-corre osmótico, um dia de gestos tão exatamente mecânicos, tão piedosamente carinhosos, mas vivos sem mim, sem quem os vista ou manuseie, sem alguém que lhes deem humanidade plena ou a mais pura animalidade.
Sinto que vivo a vida de alguém sem vida; todos os dias. E sinto que todos os dias esse alguém procura por sua vida, mesmo que não viva em si, mas em mim, mesmo que a sua vida seja vazia, sinto que se inquieta e se aniquila a cada gesto meu, a cada palidez, a cada nova manhã de olheiras e futilidades, a cada segundo que vivo fora de mim desintegrando a vida de quem pensa haver vida nesse eu vazio.

(ouça depois, durante, quando quiser...)



domingo, 18 de setembro de 2011

Outras coisas de dizer e algumas para nem escutar

"NINFA AZUL SONHANDO"
...talvez um licor dito de surpresa na oferenda de um fim de tarde chuvoso, correndo às pressas sob guarda-chuvas que teimam alados enfeitando o assovio do vento e dizer que sim, aceito, aprecio tanto tamarindo ainda mais gravitando leis de escuta e dizeres improváveis, contando chuviscos na janela e passos pela rua; e dizer que talvez te peça emprestada a tiara e adorne o alto dos meus sonhos para nunca mais acordar assustado. Mantê-la nua emoldurada às telas que abro com as mãos que antes um minuto a tocara num frêmito de imaginações. Dizer que a sombra descaída revela frases imagéticas ou fotografa suspenses descortinados entre um filme despigmentado e a chance única de dançar na lua passos de um Nijinsky astronáutico. Dizer de um amor em plano sequência dançado entre os astros escapulidos da criação e amar a dança soerguida plástica na nudez amanhecida dos corpos desmaiados. Dizer de um acordar sem hora e sem lugar só porque resolvi virar-me antes que as plateias desiludidas acordassem do transe sujo e tomassem o rumo do cu do mundo como se o acaso clareado lá fora fosse uma estrada de romeiros gretados expiando os meus e os seus pecados. Dizer que há uma fada adormecida à entrada do teu santuário e que só o sonho outra vez sonhado a faria em ninfa transformada, é tão menos visceral que a certeza fincada nas palavras que calo agora para que durmas no fundo da canção que não fiz. 

Pintura "Ninfa azul sonhando" de Ana Luisa Kaminski

domingo, 11 de setembro de 2011

10, 66...

Haverá um pai para perdoar a quem o tenha ofendido?
E um pai que o perdoe as ofensas?
10
66
Quantos anos depois?

domingo, 28 de agosto de 2011

Onde nascem as almas (?)

Ah! É só o sol que meio jazzístico adormece entrincheirado na profusão de concreto e deixa que o acorde se prolongue entre um remelexo de menina que se aproxima e a distância dos tons pastéis de um tempo mágico no qual não havia despedida. Fecho os olhos para que o ar serpenteie na varanda entre as rendas portuguesas e os lilases das malvas e ouço o outro lado do disco, uma canção que sempre me deixa em suspenso como a uma marionete que insiste em chamar para dançar quem tem olhos de retrós. Mais tarde, pouco depois dos minutos que precedem as almas, adormeço. São elas que nos levam pela aventura do sono e revolvem nossos sonhos como terra pronta para a semeadura. Deixo-me sonhar e reviro-me entranhado, acordo na imensidão do dia, viro o disco e deixo tudo recomeçar.  

domingo, 14 de agosto de 2011

Das brincadeiras e da salvação

Do outro lado um vento que seria azul não fossem as divagações rodopiava com as folhas. Sempre olhei os redemoinhos com olhos de encantamento e é bom que se diga SEMPRE é um dia ensolarado quando ainda criança ouvia dizer que no redemoinho um saci existia. Era um tempo de existires e incursões entre desajeitadas e heróicas pelos quintais e terrenos da vizinhança. As encostas no olho aventureiro eram escarpas e precipícios que se faziam de lama e rama e uma vontade sem nome de se ver rolar vermelho por inteiro e no sumidouro da luz entregar-se aos cuidados das mãos carinhosas, fossem elas dos parentes mais próximos, fossem as mãos de um socorro sincero atiradas ao fosso para que escapássemos sozinhos num renascimento de pulmões inflados e olhos espatifados contra a imensidão de flocos rabiscados de êxtase entardecido.  

domingo, 31 de julho de 2011

Eu, o outro

Sou alguém que se pensa como tal, mas pensado por outro sou diferente; aí sou o outro e eu não sou mais. Não ocupo no outro a mesma importância que me dou, nem apreendo do outro, especulações a meu próprio respeito. No outro sou outro alguém diferente daquele que me penso. Vejo-me a partir de mim; este que se vê é o outro. No outro apenas estou. Estar no outro é, obviamente, passageiro, no entanto, ser em si também o é, pois, somos no tempo. O tempo de um nos arremedos do outro, ou o próprio tempo um arremedo de todos? E apesar disso sou eu quem se diz o outro quando converso com alguém, quando caminho, lado a lado, quando amo e mesmo quando contrariado, eu e o outro nos percorremos distintos e enovelados. E sou eu, apenas e tão somente eu, diferente e tão igual porque outro.

domingo, 17 de julho de 2011

Dizeres e um querer dizer

Diga que há uma escada por onde se escape de volta à sensação de um rio que nos carregue; diga que há janelas abertas em corações de festa e farpa e que a franqueza dos gestos acena convites que a alma reconhece; diga que aos poucos divas e comensais aparecerão do nada OU quem sabe saiam dos armários e saltitem por entre as hortaliças como crianças levadas; diga que chove ao mesmo tempo em que nos cumprimentamos e que o vento faz bailar chapéus e lenços até que todos se tenham paramentado um do outro; diga que a confusão é a única brincadeira permitida antes de se lavar as mãos e que o almoço será servido sob as amendoeiras mesmo que aprisionemos um ou outro mago enlouquecido e não nos esqueçamos que é qualquer dia e não há outro jeito senão FAZER AMOR depois das tantas OU mesmo antes já que o vício é bom e nos garante vivos. Diga que ainda carregas no olhar aquela senha que poucos decifram, mas diga antes de olhar, pois não suportaria um olhar vazio; diga que ainda acenas para os bem-te-vis que dormem e sonham num canto depois dos quintais e que quando acordas o que mais desejas é um toque de leve sem pressa que te espreguices demoradamente como se o mundo estivesse em suspenso e todos os olhos, então voltados para o passado, esperassem tu vires ao presente na forma precisa e amada de um desejo em chamas. Diga que o abraço que me escapa me fere de pronto, mas devolve aos olhos tantos dias de amor. Diga que há razões e avenidas que nos tragam de volta, diga que estas distâncias não são poças profundas, mas nunca diga que tudo é descuido, um tombo de cuja profundidade sequer os sonhos consigam escapar.

domingo, 3 de julho de 2011

De tanto você

Não sei bem se foram os mesmos dias perdidos e as noites caminhadas sem rumo de tanto que você me perseguia, predadora sombra material, pesada e densa como uma sopa de imprecisões que eu tomasse de tanto frio e solidão, afinal li tantos livros, ouvi tantas músicas, quase consigo medir o tanto de chuva que caiu no último mês. Perdi um pouco o prumo e o rumo dos caminhos esqueci. De tanto você, parece mesmo é que esqueço o rumo da prosa e me acabo em poesia, uma poesia que mistura os sabores e se inquieta dentro de mim. De tanto você me perco porque desvaneço ardendo das febres que você inspira por dentro e das vodkas servidas às tantas e em chamas. De tanto você nada resolvo com a luz não me envolvo e não volvo para ver Almodóvar te colorir. Fico te assistindo alegórica, passista meteórica de cinta-liga que me desliga e me programa para quando quiser e bem entender. De tanto você me aprisiono, me rendo, me encanto, cedo meu canto aos seus arredores deito meu pranto e adormeço para te comer melhor. De tanto você espio revistas que habitualmente não perceberia fazendo de conta prá ficar mais perto e ter uma desculpa qualquer, não me pegar boquiaberto de tanto você passar em revista meu mundo e investir artista numa tela que amanhece sem me ver. De tanto você cego meus olhos num blues de céu atônito e remoo minha cômica pose démodé. De tanto você me esquecer nem mesmo sei quem sou, imagino que talvez um verme adubando seus quintais florais, talvez brisa na finita vastidão suspensa dos seus varais, mais ainda, pó repousado nos seus poros. De tanto você nem me ver não mais me reconheço, franzo o cenho frente ao espelho que não me olha e me toco para existir. Quando estremeço e procuro alguém ao meu lado não há quem me satisfaça de tanto você.

domingo, 19 de junho de 2011

Meio a meio

O que mais anoiteceu além da voz por detrás da porta foi a certeza da fome que fez correr ao telefone pedir qualquer coisa pizza quem sabe e nesse meio tempo esquecer o olhar lá fora procurando luas e sensações afagos destes que os bichos fazem sem que compreendamos por inteiro e só então perceber outra fome ainda mais profunda mais de dentro uma fome de saudades impossíveis à superfície essas saudades pontiagudas que nos roubam oxigênio e nossos melhores talentos.
Mais que as cinzas e as baganas nos cinzeiros dispostos pela casa o que ressequiu mais que a boca foi o esquecimento do gesto próximo ao queixo nem tanto o passo no corredor que por nada se inquietou ficou no aquém da reta e ameaçou pouco aquele que fartou a farra à beira do batente lembrando que o olhar pela janela desenhou um susto mais ou menos acidental e que não bastariam festas todas as noites e nem convites inesperados que nos levassem a mundos mais brilhantes e divertidos.
O que mais aconteceu foram horas chegadas de longe ontem antes talvez horas tórridas suadas sonâmbulas de braços à sorte de um ir e vir pelos mercados e sonhos pelos ermos de um bairro onde a casa tão mais anoitecida que o fim aguarda que rabisquem noutra página um pedido qualquer antes que desliguem antes que avivam todos os seus olhares pelo sem fim da janela que leva daqui lá prá fora mesmo sem partir e traga uma meio a meio; portuguesa e quatro queijos? Ou a certeza de que a fome é outra e que o meio é a ida, o meio é a volta?

domingo, 5 de junho de 2011

Geometricamente só

Quero crer na esquina e achá-la parecida com aquele dia só porque fui tão feliz ao vê-la sorrir ali pela primeira vez; nem era dia nem nada, nem escuro, nem claro, só uma esquina que lhe servia de moldura, cenário, fundo, partitura, uma esquina de luz incontida, um quadro de linhas em perspectiva que te levavam e traziam pela mão como se houvesse algum ponto de fuga escondido, uma vontade que resolvesse nossas ações e fizesse das suas e das nossas a pressa, a chuva fina, o tecido da bata tão fino molhado e o encanto dos bicos róseos na rosa tonalidade da esquina. Um altar que talvez reconstruído em outra dimensão só porque o tempo passou tão rápido pela esquina que não tivemos tempo de olhar o desenho que ali deixei, bobagem de quem se surpreende amando tanto mesmo que só um instante, o instante de virar a esquina e olhar-se só, muito embora no desenho um homem e uma mulher se dessem as mãos e resolvessem caminhar um pouco mais além da esquina e da possibilidade quase geométrica de sumirem um do outro.

domingo, 22 de maio de 2011

Asas de Ícaro

Não tenho mais dizeres prontos encapsulados nas vértebras, nem condutas pífias e maltrapilhas travestidas nos passos do meu dia, sequer pensamentos que me acompanhem as preces em cuja ponta um iceberg dá destino a pequenos deuses insepultos.
Na aventura que chamam vida, minhas investidas a céu aberto não possuem escudos e nem o pernoite gratuito; criva meus pés com as dores do caminho e cega as intenções de meus desafetos com o aço das palavras.
Se antes a canção acarinhava minha face e sorvia minhas lágrimas para dentro da tempestade, agora me arremessa por sobre os muros de uma vizinhança morta, antecipando as visões de um futuro sem metáforas.
Tenho terrores que escorrem larva pelo peito e fazem de cada paixão um desafio de titã e uma porção de ausências tatuadas que me escapolem pelo profundo do escuro exaltado.
No sobrevoo que precede a queda, o anjo cospe insatisfações antes do asfalto. Na conversão a brisa se torna canção e o inferno lhe toca o plexo, o sexo saboreia tantos outros sabores e as mãos descobrem tantas outras inspirações que os dizeres do paraíso se tornam imprecisões. As asas de Ícaro que tanto me feriram as costas já não são precisas e nem o sol uma grandeza intocável; o caminho é só um fato e percorrê-lo, necessário.

domingo, 8 de maio de 2011

Passageiros (ou, desaparições e espirais)

Sei que logo depois nos encantaríamos com as ruas abertas às pressas já que os sonhos duram tão pouco e dos destroços assomariam sóis. Também rouxinóis feitos reis viriam e mais um devaneio antes de as luzes arrebentarem a mansidão. Sei que acordaríamos presos ao tempo e sem direito ao torpor de novas guinadas e estórias mal contadas que nos fizessem gargalhar mar adentro em espirais brumosas de baleias, golfos, piratas. Sei de tanta coisa estúpida e de tanta beleza escondida, sei de frases que nunca foram ditas e sei dos caminhos que só fizemos em desejo. Sei que sulcamos as vias com passos de fantasmas e que habitamos a vida, um do outro, como reflexos nos espelhos, como entidades cativas. Sei que as ruas movediças fariam lembrar acordes tão anos oitenta, tão agora e, no entanto, tão dentro de um silêncio quase espesso como o rumo que tomaríamos no bar da esquina. Alguém sempre apareceria como que escorado na estória ao lado e tão desejoso de nos dar as mãos e navegar mais um pouco além do sol, mais além da solidão e da cegueira, alguém que não fugiria de si nem dos outros, mas que perseguiria o mesmo silêncio do qual fugíamos. Sei que uns vêm e outros somem, sei que os vincos no meu rosto se multiplicam na medida em que sonho; sei que o sonho é um sol além dos seus olhos fechados e que seus olhos fechados sonham com ruas abertas às pressas para que possamos passar.

domingo, 24 de abril de 2011

(Des)semelhanças

Bem-te-vi bem ligeiro que nem a vi por inteiro, um pouco do corpo alvo esguio sumindo na página destacada sem compromisso com o leitor a ver navios. Da decisão de voar entre os bólidos desajuizados até pegar-me, eu mesmo, sem juízo, tornou-se perfume, um frescor quase gélido deixado por onde andaste; um martírio doce penetrando-me as narinas, atirando-me longe quando ainda fazíamos amor e festa a qualquer hora. Tão ligeiro que ficou a dúvida se verdadeiro, mas o perfume quase corpóreo, a silhueta furtando-se da retina, os olhares que também viram e não souberam nada em absoluto, mas um fragmento de beleza indizível e então a nau zarpando deste ancoradouro, sombra veloz no nevoeiro. Ligar, insistir, deixar recados nos muros e nos guardanapos, olhar por todas as frestas e quem sabe encontrar um gesto, uma sugestão que fosse. Quem sabe descendo as mesmas ladeiras daquela adolescência colorida ou subindo no mesmo trem que nos levava para qualquer lado. Decidi voar por entre os bólidos desajuizados porque não fazia nenhum sentido preservar o senso e voando sem juízo vi que você se multiplicava. Bem podia ser aquela loira franzina que disfarçadamente me olhava enquanto não se decidia entre partir e ficar ali olhando as horas, bem podia ser alguma garotinha ruiva com sardas indefectíveis e seios pequenos, no entanto, tão autossuficientes e idade o bastante para compreender que, embora predadores, também somos meninos a maior parte do tempo. Bem podia ser qualquer uma, vai ver uma dessas que sumiu no exato instante em que resolvi me perder no seu encalço. Melhor voltar, esperar que escureça e que todas fiquem tão mais iguais, máscaras que se larguem por todos os cantos enquanto eu finja nem sabê-lo e me distraia com qualquer uma que me saia como você, que tenha um timbre vocal semelhante ou um jeito de mexer nos cabelos suspendendo-os no alto da cabeça deixando a nuca a descoberto e todo o resto por dizer.

domingo, 10 de abril de 2011

É preciso descobrir se ainda estamos vivos


Hoje espero mais que uma rajada de vento. Espero logo a ventania e aquele mundo que acontece aqui ao lado. Espero que venha tão logo saia do banho, ainda orvalhada e apressada, ainda nua cheirando a alguma artificialidade e com os poros destacadamente à mostra. Talvez eu tenha uma vodka e nos encharquemos enquanto procuramos algum motivo que valha a pena, além do sexo e das conversas que, em geral, só nos levam até o outro dia.
Então sabemos de um mundo possível e projetamos algumas formas e até ensaiamos nossas surpresas para com aqueles que nos espiam ávidos; querem mais e esmurram a porta, querem tão mais que chegamos a ouvir seus corações em tormento. Mas preferimos ignorar e amornar mais um chá e folhear revistas velhas à cata de inspiração ou de uma dúvida que nos faça abrir as janelas e deixar o sol se largar pela sala.


domingo, 27 de março de 2011

Da fluidez ao pó


(A mesma estória sempre. A mesma sucessão de estereótipos. A mesma mesa de cartas marcadas. As mesmas situações. Tantas diferenças)


A vida flui em meio a acontecimentos tão comuns quanto imprevistos, tão densos quanto superficiais. A vida vai da expectativa de que alguém apareça logo ao nascimento (de preferência alguém que traga presentes) até a primeira e avassaladora paixão (é quando morremos pela primeira vez, nem todos, mas a maioria). A vida vai dos natais da infância (sim, porque depois se tornam mais um daqueles encontros obrigatórios nos quais nos comportamos tão bem até que o álcool faça efeito e resolvamos denunciar as mazelas do mundo e a hipocrisia dos presentes) ao primeiro e aterrorizante dia de aula quando somos entregues aos cuidados de um sádico em pele de cordeiro que nunca vimos mais sorridente e ainda esperam que não entremos em pânico; vai da classe cheia de meninos esquisitos à descoberta das meninas ainda mais esquisitas que sem mais nem menos denunciam nossos olhares aos bedéis e algum tempo depois nos arrastam para dentro de um torpor suarento e dolorido; vai do futebol na rua sob sol, chuva e reclamações à constatação de que nossa compleição física é mais indicada para carteados descompromissados; de um presente recebido em um daqueles natais ao primeiro beijo; de uma esperança boba de que a prova nem vai ser tão difícil à descoberta do sexo (e de que as provas, às vezes, são realmente fáceis, mas o sexo nem sempre é possível); vai de uma caminhada com os amigos até a outra rua à primeira balada invadindo a noite desconhecida; vai de uma canção ao redor da fogueira ao silêncio tão desejado depois dos quarenta; do vestibular ao primeiro chefe (não necessariamente nessa ordem); vai das minhas fraldas para as fraldas da minha filha e daí às fraldas do meu neto; vai da primeira demissão à última prestação que nunca chega; das conversas fiadas à dificuldade de fazer um convite ou ao temor de ser mal interpretado quando as mãos descobrem que por sob as roupas outro universo tão mais úmido e misterioso transforma as conversas num silêncio porque indizíveis; vai de uma surpresa física que lhe faz vibrar por inteiro à outras que tanto decepcionam - pés nem tão delicados, dentes nem tão alinhados e, finalmente, rugas, calvas e dores lombares -; vai das opções que a princípio são sugestões ou imposições às concretizações dos ideais que, na verdade, mais se consomem do que se consumam; da mulher à luz, da luz aos primeiros passos, dos primeiros passos aos tombos, gazes e esparadrapos; vai da castidade ao primeiro orgasmo solitário; da prece ao espaço povoado por dragões e românticos astronautas que teimam em afirmar que a terra é azul. A vida vai de muitos lugares para outros tantos e parece não chegar a lugar nenhum; vai da fluidez ao pó como um bólido que se espatifa na reentrada.

domingo, 13 de março de 2011

O céu de Seattle

O céu não sabe de si. É preciso que alguém o olhe e compreenda que a imensidão de tons azulados se precipita incorpórea para agigantar-se ao entardecer em róseos imaginativos de um sol vindouro. Quando esse alguém é você, o céu de Seattle se torna mais intenso e se colore de luz e festa e é quando o céu se descobre e resolve que ser o céu requer imaginação e o céu então se revolve em nuvens algodoadas misturadas à eletricidade e à redenção e se precipita cinza numa chuva de amanhecer. O céu de Seattle sabe de si quando você o olha procurando estrelas e caminhos.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Inocência

Pensar quem sabe um caminho
Sem sois tristes repousados
Suar a prece amanhecida
Sequer luares amontoados
Quem sabe mar de chamas ventadas
Aos pés de um adeus calado
Um mar revolto endiabrado
Como ventania de mares sonhados
E soçobrar, a beira, encharcado
De sol, mar, suor e prece
Soçobrar à lua imensa partida
Dito fragmento perdido
Incrustado
No fundo dos olhos que avistam
O caminho de tanta ironia
Quem sabe pensar um sorriso
Que sorria para si e para os deuses
Não com os dentes à mostra, imprecisos
Mas narcísico e onisciente
O próprio riso divino
De tão menino seguindo sois, luas, martírios
Tão canino sorrindo prá lua
Tímida entre nuvens em desalinho
De tão contínuo
Caminho.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Assim, feito uma velha folha em branco

Algumas horas quarando ao sol, só o claro absoluto borrado por todos os lados e sentidos despejado em plena anestesia de sabores e visões. Há uma calmaria fingida ao fundo, uma espécie de torpor que emudece até a alma. Sinto-me atado aos destroços de um fim de semana laqueado, do qual desperto tantas vezes e tantas outras desvaneço. O sol nem é sol, é mais um arremedo sobrenatural amarelecido não de si, mas dos olhos que não o suportam; e o claro nem arrefece ou prostra como é próprio das luzes intensas, ao contrário arrebata, desmemoria toda sorte de quereres, aqueles que nos ferem o coração e o baixo ventre numa sucessão de beijos e arremates, golpes e estocadas, fugas e olhares, olhares impossíveis de sol, sol impossível de festa, pois, precisamente à uma hora dessas toda festa é um princípio de sol borrado por todos os lados.

domingo, 30 de janeiro de 2011

A perdição do seu olhar

Há um olhar perdido que se atira na contramão; é um olhar de longe, de um espaço sem domingos sem feiras e sem amigos, onde não se faz apropriado um aceno nem piscadelas de passagem muito menos que se deseje o corpo de alguém só porque esse alguém também pareça perdido quando enfrenta a espuma do mar e por alguns segundos se lance iemanjá e surja mulher, uma alma tão mais radiante perseguindo outros mares que nos habitam revoltos e investem contra a noite trazendo pesadelos cujas patas se deixam marcadas na poeira ancestral dos móveis, nas camas que só mesmo um gemido alcança quando feito lança perpassa estes corpos aos pés da morte. Mas, não há temor nem rendição, há um clamor de velhas águas noturnas que cochicham junto às guias, por sobre deusas abstratas que no fundo da memória jazem decapitadas. Há um fervor por todas estas águas noturnas que saram nossas pústulas em troca de pequeninos dramas suportáveis. Há um drama em todos os espelhos, por dentro das estórias que não se contam, por entre as contas do terço que não escolhe missa, rindo das anedotas mal contadas, espiando o prazer dos amantes que se banham nas mesmas águas noturnas que para sempre seriam mar não fossem irremediavelmente um jeito perdido de olhar.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Rascunho

Há uma preferência de sol aberto, um olhar de janela encortinada que obriga as mãos em voo calmo a acenarem breves e cautelosas. Há uma ave que não se aninha e que trila um verbo impreciso, uma estória que se agita contada sem muita retórica e quase nenhuma rima.
Quando chove, porém, há uma vida que se revela em ondas, o balé das plantas que na rega produz um alvoroço de bichos tímidos que correm avisar o tempo de outras preguiças; as abas do chapéu desfalecidas nas águas, o cochicho que nem é mais prece de madrugada, mas uma vontade de vozes trazendo café, leite e pão, também suspiros de imensidão desenhada depois das janelas.
Há um tempo acocorado junto à criação encorpando-se de morte; um tempo atento às passadas que madrugam certas de que não vamos semear olhares e nem despertar desejos secretos. O que se rompe, então, o que escancara a fissura do tempo é este olhar que escorrega desde aqui onde me intrigo e desmaio dentro de expectativas desbotadas, suspensas e plásticas, até a nostalgia que nada mais rascunha, tampouco abre as portas.
Há uma noite que se espaça na fenda, uma mulher triste que escreve versos felizes num faz-de-conta que aflito conta os segundos do bibelô sobre a mesa, a toalhinha de renda manchada na borda (um pingo de café tão quente), as notícias de que o sol já vem. Há um corpo a seu lado e ao meu lado também; há o desejo afoito de lhe estocar tão fundo e tão violentamente que chego a pensar que é morte o pensamento e que pensar é a ferida que apalpas na hora de coar o café e depois, sem querer, derramá-lo sobre a borda da toalhinha de renda.
Há por dentro destes vazios um ilusionismo que nos traz à claridade de um altar, como presas indefesas de uma crença que me faz sangrar. E é sangrando que estico as cercas, cuido de não criar motivos e esfrego nos olhos um vento de solidão infinda. À porta, o cheiro das coisas da manhã me impacienta, manhã de mais um dia, mais um dia de goles em seco, de apelos aos deuses moribundos esquecidos junto às relíquias dos baús, mais um dia de ir e vir pelos corredores, de abandoná-los às dores dos luzires que de fora lançam um querer incomum, um caminho que sai da porta e se joga contra o mundo, um caminho de quedas cansadas e de um gosto morto nos lábios, um beijo de anjo, uma insinuação escorrendo sobre o seio; a gota de café, a borra no coador, a adivinhação de um suspiro tão longe lembrando os cacos de um bibelô no chão.

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