segunda-feira, 4 de agosto de 2008

As fuças do dragão do tempo

Ouço outros tempos; ouço claramente um sax e algumas vozes domésticas. Ouço uma lágrima e um aceno, um escorregão e uma nota em falsete, um anúncio e um segredo (o segredo é um cochicho que é uma sensação agradável no ouvido, uma comichão que não pode ser nada além, pois, avós e irmãos e, quando muito, amigos ou um barco pouco seguro, sem rumo, que não suporta sexo a bordo). É possível, se nos agacharmos, ouvir-se o escuro, suas formas imprecisas e intactas, paredes fugidias e janelas caladas, mas espere um pouco, ouça, há um outro sentimento que escapa como seqüência de um arranjo improvisado, há um movimento que inspira cuidado, uma queda surda que finalmente mutila e resguarda o caos. Ouço um acorde que precipita uma porta fechada e passos apressados buscando a rua, um acorde que não acode e alguém que sempre chega destes tempos caudalosos que se derramam mesmo quando ausentes; tempos densos e afetuosos como um abraço. Ouço vozes que trazem notícias, boas antigas novas que dão conta de um mexerico qualquer ou uma esperança vindoura. Alertam sobre conquistas pífias e desaparecimentos contumazes – os meus desaparecidos, percebo, mantêm-se vigilantes e parecem espiar pelas frestas, as mesmas que fazem a poeira espiralar numa dança solar. Tento (quase sempre em vão) uma ponte que me livre do fosso e da possibilidade de uma arremetida pouco eficiente e, quem sabe, suicida. Tento uma conversa e o tempo tenta tentos a todo instante; tento uma paixão que machuque e que devolva a dor, tento roubar do inferno a dúvida de deus e estabelecer a incontinência e a ferocidade. Ouço a mesma dor que sentencia o náufrago e absolve o poeta, e quando a ouço resolvo que não sou uma poça, mas o mar. Ouço outros tempos; ouço os olhos aflitos que pestanejam borboletas num campo de um outro tempo ainda mais distante, olhos que lacrimejam as águas de um fim contido na execração do corpo. Ouço mãos que pedem não um perdão, mas excomunhão, não carinho, mas um porto; âncoras lançadas – corpo, escuridão, afazeres, sons, redenção. Outros tempos que ouço como um feto, uma carícia na pele, uma vontade de ficar e chamá-la para dançar; um cordão que prende ao módulo e nega a alma à órbita. Há uma árvore que vê e um homem que chora; há uma santa impregnada de substâncias pouco cristãs e muitas horas sem pressa; há crianças e tarefas; sonhos e livros; corredores que transportam mortos; há velhos e banhos de rio; palhaços e presépios e um desejo comum de olhar a lua. Ouço a outra banda escura e pressinto as fuças de um dragão pouco acostumado à dor de um súbito clarão.

13 comentários:

Maria disse...

hummm...dragão...comichão nos pés, novos desafios, ouvido observador, uma árvore que vê...execração...gostei dessa audição jorrada assim nas palavras...beijo

Stella Petra disse...

O mundo está carente de ouvidos atentos, olhos sem medo, mãos carinhosas, passos suaves, espíritos livres...
MAGNÍFICO!!!!
Obrigada por permitir esse passeio de forma a sonhar junto sonhos que devemos sonhar acordados...
Beijinhos carregados de energias violetas...
Stellinha :)

f@ disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
f@ disse...

Muito bom ler-te, texto magnifico...
O misterioso segredo do silêncio...
recato de vastos sons apegados ao ouvido, como A feto germinado em menos infinito até final mente se elevar em caule imenso e transparecer verde e forte em azulado céu de floresta quente e húmida, ... sempre obstinada mente a procurar luz e uma Asa um ténue Abraço de pássaro en canta do ...
Beijinho das nuvens

Davyd Wilkerson disse...

Bons conteúdos no seu blog. Está de parabéns.

Cristiana Fonseca disse...

Olá Sérgio,
Sublime, simplesmente sublime, você não apenas escreve, vc sabe escrever, o que escrever, a que escrever. Ès um grande escritor, daqueles que escreve com a alma.
Sublime este texto, sublime.
Beijos,
Cris

Sr do Vale disse...

Nossa! Sérgio, quanto simbolismo, quanta informação, na forma dada pelo poeta absolvido.
Parece-me imagens passando em giro super rápido, com uma respiração ofegante, e muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.
Parabéns belo ensaio.

Nilson Barcelli disse...

Excelente deambulação pela magia dos silêncios, dos sons...
Prosa poética de fino traço que poderá, no entanto, semear caretas em eventuais dragões incultos, face à eloquencia das suas palavras, ideias e imagens expressas neste pequeno ensaio literário.
Parabéns por mais este magnífico post caro amigo.

Abraço.

Anônimo disse...

Belíssimo texto a respeito de tantas coisas que a gente quer dizer e não sabe como...adorei.

Anônimo disse...

Meus queridos...fico feliz da vida com as suas visitas, acreditem...
Há pouco mais de um ano publiquei este texto na versão antiga da "trama" - daquela feita, estes generosos amigos deixaram as seguintes impressões:

Claudio [gixy@ig.com.br]
SERGINHO, ADOREI ESSE DRAGÃO! É SEMPRE BOM MANTER A PEGADA! O TEXTO CONTINUA SEU CAMINHO E O BOM É REVER O AMIGO NAS IDÉIAS E AS PALAVRAS NOS AMIGOS! E AS SITUAÇÕES DOS AMIGOS NAS PALAVRAS, E PRINCIPALMENTE A POESIA NA CABEÇA DAS PALAVRAS DO AMIGO! ABRAÇÃO! XYSS:-)
20/04/2007 06:47

Flawio Lara [flguitar@terra.com.br]
Cara, que texto maravilhoso!!! Parabéns. Que bom poder ter contato com a sua Arte, mesmo estando tão distante. Um Grande Abraço !!!
08/04/2007 21:20

Teca - M Luiza [mlnb@ajato.com.br]
Sérgio, Acatei sua sugestão e arrumei um tempinho nesses feriados da Semana Santa para visitar seu blog. Valeu a pena. Fim de tarde chuvosa, temperatura amena e um texto que nos faz pensar e sonhar. Parabéns! Abraços Teca (Cedom - Turma 1970)
07/04/2007 20:09

Marilia [mariliag.souza@terra.com.br]
que bálsamo. eu aqui, em Maresias, numa correria doida e, de repente, um texto tão bonito. Fico muito feliz em te reconhecer nas palavras. um beijo
07/04/2007 14:55

Elivan Rosas Ribeiro [elivanribeiro@hotmail.com] [http://spaces.msn.com/members/elispace32]
Em meio a um poema nostálgico, ouço o teu coração e vejo, através de uma admirável escrita, a tua alma de artista a sobreviver ... apesar de tudo. ... "São Jorge, por favor, me empresta o dragão"!... Obrigada pelo lindo texto! Bjusssssssss

Valeu!!
Sérgio Luyz Rocha

Vanuza Pantaleão disse...

Serginho! (posso chamá-lo assim?)
Que texto SENSORIAL! Amigo, você não precisa de pincel, nem tinta, pois a tua palavra é imagem e mensagem onde Poesia e Prosa se mesclam e quando pensamos captar uma, a outra já toma o lugar...
Qualidade, é disso que eu gosto, não adianta, não faço por menos!
"Natureza e homem já foram irmanados..." Já, meu amigo! Já foram...A pergunta agora é essa: voltarão a sê-lo???
Parabéns mesmo e um abração carinhoso!!!

Cristiana Fonseca disse...

Olá Sérgio,
fiz um desenho novo, quando puder apareça por lá
Beijos,
Cris

mundo azul disse...

Gostei do seu texto! Gostei de conhecer seu espaço...


Beijos de luz! - Zélia

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