domingo, 16 de janeiro de 2011

Rascunho

Há uma preferência de sol aberto, um olhar de janela encortinada que obriga as mãos em voo calmo a acenarem breves e cautelosas. Há uma ave que não se aninha e que trila um verbo impreciso, uma estória que se agita contada sem muita retórica e quase nenhuma rima.
Quando chove, porém, há uma vida que se revela em ondas, o balé das plantas que na rega produz um alvoroço de bichos tímidos que correm avisar o tempo de outras preguiças; as abas do chapéu desfalecidas nas águas, o cochicho que nem é mais prece de madrugada, mas uma vontade de vozes trazendo café, leite e pão, também suspiros de imensidão desenhada depois das janelas.
Há um tempo acocorado junto à criação encorpando-se de morte; um tempo atento às passadas que madrugam certas de que não vamos semear olhares e nem despertar desejos secretos. O que se rompe, então, o que escancara a fissura do tempo é este olhar que escorrega desde aqui onde me intrigo e desmaio dentro de expectativas desbotadas, suspensas e plásticas, até a nostalgia que nada mais rascunha, tampouco abre as portas.
Há uma noite que se espaça na fenda, uma mulher triste que escreve versos felizes num faz-de-conta que aflito conta os segundos do bibelô sobre a mesa, a toalhinha de renda manchada na borda (um pingo de café tão quente), as notícias de que o sol já vem. Há um corpo a seu lado e ao meu lado também; há o desejo afoito de lhe estocar tão fundo e tão violentamente que chego a pensar que é morte o pensamento e que pensar é a ferida que apalpas na hora de coar o café e depois, sem querer, derramá-lo sobre a borda da toalhinha de renda.
Há por dentro destes vazios um ilusionismo que nos traz à claridade de um altar, como presas indefesas de uma crença que me faz sangrar. E é sangrando que estico as cercas, cuido de não criar motivos e esfrego nos olhos um vento de solidão infinda. À porta, o cheiro das coisas da manhã me impacienta, manhã de mais um dia, mais um dia de goles em seco, de apelos aos deuses moribundos esquecidos junto às relíquias dos baús, mais um dia de ir e vir pelos corredores, de abandoná-los às dores dos luzires que de fora lançam um querer incomum, um caminho que sai da porta e se joga contra o mundo, um caminho de quedas cansadas e de um gosto morto nos lábios, um beijo de anjo, uma insinuação escorrendo sobre o seio; a gota de café, a borra no coador, a adivinhação de um suspiro tão longe lembrando os cacos de um bibelô no chão.

3 comentários:

Vanuza Pantaleão disse...

Já estava para ir te buscar e nem o café pude coar, esbarrei no meu bibelô de porcelana e tudo ficou aos cacos. E por tua culpa, Serginho! [risos]

Amigo, feliz estou pelo teu retorno, não entendo a blogosfera sem a tua inteligência e sensibilidade.
2011 agora começa bem, enfim!!!Bjssss

Susan Blum disse...

Justamente para não me deixar neste estado de:
"...e esfrego nos olhos um vento de solidão infinda."
é que me aninho nas letras de seu blog, que me deixo levar pelas ondas das frases e que me faço acompanhar pelo corpo a meu lado (seu blog é seu corpo e alma no espaço virtual.)
Obrigada por mais um belo presente regado a café!

f@ disse...

Olá Sérgio Beijinhos

mto mto mto gosto em te ler...
+ um beijo

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