sexta-feira, 15 de maio de 2009

Todas as vozes que (não) estão lá

"...o melhor o tempo esconde longe, muito longe, mas bem dentro aqui..."
Caetano Veloso
Acostumei-me a eles. Quando não saltam dos armários ou empalidecidos escapolem dos velhos álbuns de fotografias e se misturam às folhas que nunca recolho, estranho. Estranho tanto que saio a procurá-los, abro baús, portas alheias, reviro bolsos e carteiras, sequer as frestas me escapam. Se necessário vou a outros bairros me certificar se, por um acaso, algum acabou esquecido dentro de uma conversa qualquer levada há tantos anos. Mas é em casa - quem sabe espremidos entre os vinis, entre algum falso brilhante e a solidão de um blues fora de ordem, caídos atrás da estante da sala, é aquela mesma feita sob encomenda e que só cabe ali e em nenhum outro canto do mundo - onde mais costumeiramente tropeço neles.
Quando encontro algum vou logo perguntando por onde andava, com quem, fazendo o que, meio paternal, meio ciumento, meio em dúvida, já que imagino que a vida seria melhor sem eles. Outro dia, um me apareceu trazendo notícias dela. Ela mesma! Aquela de quem só falamos quando estamos bêbados, dançando tão agarrados quanto distantes. Falou-me que ela estava bem, morando em algum lugar perfeito, vivendo com alguém perfeito e fazendo coisas estúpidas como, por exemplo, conviver com tanta perfeição. Falou-me também que quase morre numa crise existencial. Não! Ela não! Ele. Ela estava bem, saiu de uma das gavetas da cômoda, aquela perto da parede que você vivia implicando, não sei se com o modelo ou com o fato de ter sido presente dela. Acho que com os dois.
Também eu quase morro, sabia? Foi há alguns dias quando eles resolveram aparecer ao mesmo tempo. A dor era tanta que tomei o vidro todo. Lembro que você dizia que isso de tomar um monte de comprimidos era coisa de bicha ou mulherzinha – palavras suas! Nunca concordei, embora hoje tenha lá minhas dúvidas. Tudo bem, eu já devia saber que deu não leu aparecem todos e mais alguns. Não faz mal, eles são assim mesmo e sempre tem alguma novidade, seja no fim do dia frustrante de trabalho, seja no espelho e a descoberta de mais um vinco no rosto, seja ao telefone e todas as vozes que (não) estão lá, tem sempre mais um a me visitar, invadir e resistir lá no fundo onde só alcanço em dias de muito sol.
Quando vou dormir sinto que eles se reúnem ao meu redor e preocupados velam a noite inteira. Quando acordo, estou só. Tudo parece tão calmo nesta hora que precede as pequenas mortes que morrerei durante o dia, neste instante que de tão pequeno é indizível, mas mesmo assim precede as coisas simples que vão se desenrolando como fazer café, a barba que só faço às vezes, a escolha da camisa, da meia, e aí eles vão chegando, uns mais afoitos, outros mais discretos. Minha sorte é que já é hora de sair e dependendo de quem apareça tudo ficará em suspenso até o entardecer quando eles vêm ao meu encontro esteja eu onde estiver. O engraçado é que mesmo depois da overdose, mesmo depois de tantos anos e de tanta dor, mesmo depois de tanto silêncio eu me sinta assim, acostumado.
Tê-los por perto, mesmo que incrustados no peito, confundindo-se com meu suor, meus cheiros, atravessados na garganta, roubando meu cobertor, lendo meus livros e os abandonando à própria sorte, esquecendo o jornal por todos os cantos, ligando e desligando as lâmpadas, mesmo assim o convívio com eles parece ser a única forma de vida possível. Você compreende? Não que eu não me sinta vivo, é claro que me sinto vivo, você me faz isso, quer dizer, você faz com que eu me sinta vivo, mas é sempre tão passageiro, não nos impregnamos, não ficam marcas, você compreende? Não há nem ferro nem fogo! E sabe do que mais? Sei que com eles funciona da mesma maneira. Se eu sumo, eles somem. Eles não existem sem a minha vida e a minha vida já é parte deste ritual, você compreende? Consegue compreender que os fantasmas só fazem sentido se tiverem a quem assombrar? Consegue?

12 comentários:

Anônimo disse...

tenho tentado reaprender a rezar, sabe? algumas pessoas estão me ajudando nisso, cada uma com seu jeito, com sua crença, com seu modo de olhar a vida, as coisas, com seu modo de agir no mundo. li agora um negócio q acho q posso te dizer aqui sem parecer boba ou pretensiosa ou querer te indicar qq caminho, pq parece q os caminhos estão sempre dentro de nós. 'a atenção é a prece natural da alma.'-- Que a nossa atenção possa incluir, como numa prece, todas as criaturas.

um bj e um abraço
bem forte pra ti.

Clara

Anônimo disse...

Ontem tive uma reunião com as amigas do tempo do Instituto de Educação. Amigas que não via há praticamente 30 anos. Em agosto passado nos reunimos. Ontem, de novo, mais pessoas, na casa de uma das grandes amigas que tive em infância. Uma menininha loira que eu "agarrava", gostava muito dela, pela paz, pela felicidade e pelo carinho que ela tinha com todos. Uma menininha loira que tocava piano e flauta... parecia um anjo tocando. Pois este anjo continua existindo. Incrível como a "casca" que temos nada mais é que apenas isso: casca!!
o sumo, a verdade, o sabor.. estão dentro.
Como eu queria poder ser uma amiga assim para vc: com sumo, com verdade.. mas ainda estou aprendendo a viver... ainda não conheço as regras do jogo VIDA.
Porém, sei que gosto de vc!
Este seu escrito me lembrou um poema de Florbela Espanca, que aqui repasso... Beijos querido amigo!
http://pt.netlog.com/go/explore/videos/videoid=pt-895724
nossa... relendo vejo que saiu tudo truncado, mas vou deixar assim mesmo... palavras e sentimentos apenas esparramados... não vale a pena ajeitar!
Susan

f@ disse...

Sim Sérgio, compreendo…
Os meus fantasmas tb são metade de mim… tão pegados…tão no interior que chegam a ajudar-me e existir…
De mãos dadas sempre com esses amiguinhos secretos … e tantas vezes o abraço…

BELO teu texto… como sempre…

Imenso beijinho

Vanuza Pantaleão disse...

Não há muito o que compreender...eles estão conosco e sempre estarão, mesmo quando partirmos...comigo sempre falaram, sussuram frases sem sentido, mas eu sinto...já os vi e quase os toquei, são altos, cabelos longos e lisos, não sorriem, mas são lindos,
SÃO MEUS ANJOS!

Serginho, só você consegue isso: nos incita a abrir as portas da alma, do inconsciente...

MARAVILHOSO, SIMPLESMENTE!!!
Beijosssss

Vanuza Pantaleão disse...

Errinho:
"...sussurram..."
Desculpe-me!

Elvira Carvalho disse...

E todos nós em alguma época da vida nos deixamos surpreender por eles não é verdade?
O essencial é que não nos agarremos a eles.
Um abraço

f@ disse...

Sérgi,

B elo mto belo....
*
infinito beijinho

ANALUKAMINSKI PINTURAS disse...

Caríssimo amigo, aprecio muito suas "tramas", e redes, e teias, e tessituras, de letras, sentidos, sensações... Bom passear por teu jardim, estava com saudades... Hoje tirei o dia para fazer muitas visitas, aos espaços de amigos e amigas queridos, amantes de poesia e arte. Deixo um pedido: que tal aumentar um pouco o tamanho da letra??? Fica um pouco cansativo para ler com a fonte deste tamanho. Abraços alados azuis!

Vanuza Pantaleão disse...

O novo template urbano da TRAMA está o máximo, Serginho!
Amei!!!
Boa semana, amigo!
(é sampa?)

malaguetasweet disse...

Não queremos esquecer que fomos felizes; qua a vida era viável e as coisas eram descomplicadas: sorríamos, bebíamos e tudo parecia tão bom! Os amigos eram reais, os amores eternos (e ainda são!)
Deixe que seus fantasmas te façam companhia...eles não te assobram, eles te amam e não querem se esquecer de que foram felizes com vc também.

(Sinto-me um pouco culpada dessa sensação que te invadiu...Desculpe!)

Bjs carinhosos

malaguetasweet disse...

ops assombram

Oliver Pickwick disse...

E quem, neste mundo debaixo do céu, não tem algum motivo para assombrar-se?
Um abraço!

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