terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Santificadas sejam as dúvidas e as esperanças

Algumas poucas sombras revelam ainda a luz chorosa, carcomida sobre os móveis, gotejante de alturas caladas em cujo cimo alguns anjos tramam a derrama de uma escuridão implacável.
Não acordei cedo; nem sei se acordei ou se transbordo sonhos além de mim e da exaustão. O fato é que as roupas estão jogadas por todos os cantos; as suas também. Tem-se a impressão de que foi travado um combate irascível cujo intento maior ou único fora o êxtase da cópula. Vencedores e vencidos? Não parece fazer a menor diferença já que você está ao meu lado tão combalida quanto eu e é quando me esforço para entender a situação; chove muito e percebo que sequer sei se tanto escuro tem razões naturais - noite? -, ou se obra de algum desgraçado encarapitado no meu telhado que cisma em apagar meu sol.
Aquelas poucas sombras indicam alguma coisa, mas como já acontecera antes, talvez não seja nada além da minha frustração se derramando sobre todos os meus pertences e mesmo sobre tudo o que não me pertença. No quadro, não me pertencem o vestido estampado, nem a lingerie. Não vejo sua bolsa, embora me recorde de suas mãos nervosas tateando a escuridão à sua procura e depois de um tempo (que então me pareceu eterno) tocar-me delicadamente cobrindo-me de prevenções, texturas e sabores.
As sombras são mesmo aterradoras. Gotejam securas e mesmo chovendo gotejam desertos, gotejam pedaços de outras vidas que por acaso se deitaram ali, talvez sob as mesmas circunstâncias, talvez imaginando alguma tolice que me associasse às fortunas, ou a um desempenho fora do comum. Talvez tenham acordado antes de mim e ido embora tão logo tenham notado as sombras, o resto de vodka, o cheiro que a pobreza deixa nas coisas, o punho esgarçado da camisa e o suor misturado a outras secreções tão mais virtuosas.
Você não foi embora. Dorme profundamente ou está profundamente ausente, presa a um sonho alcoólico que a faz vergar sobre o vaso e desamparar-se em tantos prazeres transformados. Não, não é mais sonho, você realmente está aí debruçada sobre o vaso, abraçada a ele como ainda a pouco se agarrava a mim. As sombras espiam ao mesmo tempo em que deslizam pelas paredes como íncubos oportunistas, vigilantes, prontos para desfazer a cena e editá-la sob formas de uma coloração demasiada - um take mais ou menos como em Almodóvar - cuja silhueta te apresente nua, muito branca, olheiras terrivelmente tingidas em azul-cobalto - se bem que sou péssimo na identificação das cores -, os cabelos molhados não sei se da das goteiras que imagino ou do banho que talvez eu tenha lhe dado. É possível ver os golfinhos que brincam no seu tornozelo esquerdo e girando um pouco o quadro as três estrelas que adornam o cume da sua bunda rija, redonda, agora acomodada à cerâmica fria. Os íncubos estão próximos e também a hora de acordar; não sei se durmo, ou se acordado pronto para preparar um café extra-forte, se morto imaginando um deserto gotejando em meu plexo e um sol violentado pelo pulha no telhado.
Devo disputá-la com os íncubos. Devo fazer valer os meus domínios e afugentá-los; basta que escureça um pouco mais, que o triste patife que passeia na cobertura fulmine de uma vez por todas qualquer vaga-lume que mantenha em torno de si estas grandezas suspensas.
Estou deitado aguardando que o escuro me invada os olhos e carregue para o fundo a lágrima que então ilumina o vão desta loucura. Neste vão você vira para o outro lado oferecendo-me toda a porção voluptuosa sobre a qual três estrelas me servem de guia e sem hesitar a cubro com meu corpo procurando a opulência dos teus caminhos, mas o que está oculto e grita das alturas são os anjos que tramam a derrama e já não é um grito que clama pela escuridão, mas uma gargalhada que destroça a madrugada e faz amanhecer impiedosamente. Não há quem furte o sol, não há mais nenhuma mulher que me ofereça estrelas, apenas a santificação de um quadro que pode ser dúvida ou esperança e que se pode pendurar em qualquer parede ou vender-se feito um folhetim editado às pressas, sem que ninguém percebesse.

9 comentários:

Fabrício Brandão disse...

As relações são assim, um tal misto de ecos de vidas passadas e os mistérios catalogados por língua, corpo e alma. Resta-nos a sanha atirada de varrer os tais lugares, mesmo que tudo se transmute em engano.

Abraços, Sérgio!

Anônimo disse...

um conto muito bem estruturado... as imagens são pintadas em nossa mente em tons de cinza, um chiaro escuro das lembranças, dos sentidos ainda latentes... nossa Sergio... sempre admirei vc, mas agora ganhou uma fã incondicional... lindo... gostei MUITO.... difícil desenhar aqui, com as mesmas letras que vc usou, porém destruindo a poesia... melhor parar então e reler esta fotografia em forma de conto...Susan Blum

sagitario disse...

GOSTEI,
é uma tema muito complicado, mas as sombras muitas vezes perseguem-nos para toda a parte, os chineses é que jogam muito bem com as sombras, aliás eles são de uma paciência única e sabem tirar partido das coisas mais simples.
um abraço

Vanuza Pantaleão disse...

Oi, Sérgio!
Muita gripe, estou quase sem condições de acompanhar o texto, mas conhecendo-o bem como o conheço, sei do seu perfil intelectual e da qualidade de tudo o que produz.
Muito Sucesso em 2009, amigo!!!Bjs

Daniel Costa disse...

Sérgio

Apreciei a texto!
De facto, é composto com os ingredientes que fazem dele óptima leitura. Pelo menos, para quem é havido de ir pensando no que lê.

Daniel

f@ disse...

Olá Sérgio,

Sublime este texto… (Algu) mas sombras (cho)rosas a «perfu»mar o a cor dar dos olhos…
O sonho conti…nua em leito de pétalas acetinadas, reflexos de sol na água … como se rio se tratasse…
A (ch)uva brota do sonho… refresco a gotejar do beiral néctar de estrelas para ilustrar o teu Sol em pauta de palavras … musical… escuto a mel o dia….

Beijinhos das nuvens

Ana Leticia disse...

Uma atmosfera lúgubre e suada, um misto de vapor de paixão com humor escatológico.
Excelente desenrolo - ou enrosco de corpos? - de um conto fantástico - ou real?
Muito bom. :)
Ana Letícia
www.mineirasuai.blogspot.com

Cristiana Fonseca disse...

Olá Sérgio,
fantástica escrita, sublime texto. Aprecio em muito tua escrita.
Abraços,
Cris

Oliver Pickwick disse...

É, velho Sérgio! Retornou em plena forma. Ia lendo o texto e imaginando um roteiro de um filme cult; um romance existencial; uma peça de teatro de tempos ancestrais, onde o protagonista-mor era o próprio texto.
Acumulou o talento na ausência.
Um abraço!

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