terça-feira, 26 de agosto de 2008

Não antes de tudo dar certo


(passado, presente, participo sendo o mistério do planeta*)
Uma estória não pode acabar assim, não de um segundo para o outro, no flash insano de um piscar de olhos que sequer são os seus. Não assim, sem se dar conta que o fim espreita tão próximo que seu hálito insuspeito possa ser sentido. Não antes dos sentidos, um toque no braço da companheira ao lado e tantos fins de semana em família, e tantas reuniões até tão tarde, tão tarde que as crianças já estão dormindo e daqui a pouco é (outro) dia e o sorriso tão aberto que cumprimenta, saúda, e os semáforos que talvez nem demorem tanto. Não antes de ter tempo para ouvir mais uma canção, comprar flores, voltar mais cedo e fazer amor com mais vagar.
Não pode ser assim o final de uma estória. Não tão velozmente que sequer se fixem as feições, as imperfeições, sem que os recados tenham sido trocados, sem dirimir as dúvidas, fechar os contratos, abrir as janelas, alimentar a criação, espanar o pó de tanto tempo e chão. Não antes de acenar os lenços que emprestam à cena uma condição de que é para sempre, mas nem tanto. Não sem a percepção de que tudo não passou de um pesadelo e que o almoço está pronto e cheira tão bem que convém chamar os amigos. Não antes que a palavra se lance ao espaço e diga tudo o que sempre desejou dizer, e mesmo que alguém continue incrédulo diga que sim que há outra pessoa apaixonada deitada com você sob um céu repleto de mistérios. Não antes de tudo dar certo, não antes dos pequenos reparos diários, não antes das malas prontas e sem rumo, não antes da eternidade que o vôo possa prometer.
(para Osiris Antonio Salton Júnior)
* verso da letra Mistério do planeta - Galvão e Moraes Moreira no disco Acabou Chorare (1972)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Vinte e quatro quadros

 

Enquanto permanecias retida na fotografia, latejava por dentro uma agonia salgada de espelhos vivos e águas indiscretas, também danças que bruxuleavam junto ao furta-cor de uma castidade imediata. Quando movias a cena como no cinema, ao redor folhas de um outono esmaecido rodopiavam tangidas por acenos e descuidos. Quando então te movimentavas decidida, paralisavam-se as dimensões e dos cenários rasgados escapuliam tuas faces, teus trejeitos e todos os teus personagens. Escapulia inteiramente lânguida fatal e lançada nave lúbrica. Quando resolveu olhar, já destacada da imobilidade em preto em branco, eu já caminhava apressado. Pude sentir o fogo dos teus olhos verdes cravados na minha nuca. Não olhei. Preferi mantê-la como a uma fotografia que eu pudesse simplesmente fechar num álbum ou suprimir de meus arquivos. Esqueci-me, contudo, tratar-se de um filme e os efeitos especiais foram tão mais eficazes que acabei prostrado vendo-a a minha frente em desafio. Teus olhos já não eram fogo, eram pura euforia e dentro desta euforia teu coração batia descompassado, ora um tango levado por Piazzolla ora retumbante Vai-vai despencando pela avenida. Resolvi procurar outra saída e descobri que todas as vias estavam repletas de sonhos inacabados que se agarravam à noite como quem luta desesperadamente por um amor silenciado na dinâmica de vinte e quatro quadros.
Desde então é assim que vejo as horas e todo o espanto nos teus olhos enquanto as ladeiras se movem em meio às estórias tantas e tão caóticas que tomam as guias e calçadas obrigando todos a se esgueirarem rente às paredes como que tateando um escuro lúgubre e pegajoso do qual escapolem os motivos de tanto espanto. Assim me encontro próximo, mas impossibilitado de acarinhar-lhe o rosto e mesmo de apontar um meio menos doloroso de abrir-se o tempo para penetrar num outro mundo de intensidades musicais ou aonde as máscaras não escondessem o revés diário e fossem apenas brinquedos sensuais. Se, finalmente, conseguimos nos encontrar, mesmo que a multidão se acotovele e grite e nos olhe com olhos amanhecidos e vorazes, mesmo que se descabelem e afundem num lamaçal ainda nem desenhado, mas já tão presente sob nossos pés, então o tempo submerge fotografado pela ansiedade que nos esconde sob os lençóis flagrados em vinte e quatro quadros.

sábado, 16 de agosto de 2008

Post especial

 
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
A noite que ele não veio
Foi de tristeza prá mim
[...]
O marinheiro bonito
Sereia do mar levou
[...]
É doce morrer...

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Em ti e no silêncio que habitei




A sala solta no ar de sílabas flutuantes dizia tudo por segundo. E dizer sempre foi um modo de deslocar-se entre as sedas de um silêncio habitado que, esgueirando-se pelas frestas da veneziana, vinha nos acordar com o sol.
Pequenas mentiras de rodapés e discursos de soleira encontravam-se na densidade morna do ambiente e deslizavam pela decoração provocando um alarido de tantos tempos e tantas alucinações, um vozerio incontrolável vindo do dia anterior e da ulterior indisposição em controlar-se.
Se os vasos reclamassem sementes, se os lustres conspirassem luzes, se as cadeiras queixosas pedissem descanso, se por um segundo o silêncio fosse apenas um soluço, uma interrupção física, um pedido de asilo, uma outra conspiração que intercedesse por qualquer coisa além de uma estória repetida, se teu corpo ressentido soluçasse a ausência do meu ou, ao contrário, se me invadisse farta e palidamente, então os espectros não se resignariam e abririam ruidosamente portas e janelas que de fora trariam outras sentenças e querelas produzindo uma quadro de antropologias distantes que inspirariam semelhanças e levariam sonhos aos corredores até então vazios.
Vazios de mim e de ti que nunca mais vi nem nada além de vê-la num retrato sorrindo ainda um pouco.
Via-se um fim contido nas mãos postas pedintes em oração, via-se um arremate costurado no bordado dentro da confusão que não se abatia, via-se o olhar calado navegando direções esculpidas nos destroços do coração, ouvia-se o suspiro último de Kerouac convertido ou a dança da morte no grito do teu corpo curvilíneo, ouvia-se a preguiça dos litros e litros de vinho e mais que tudo se percebia arrependido num canto o que antes trovejara em cada ouvido e não calara porque rogado: silêncio.
Não o silêncio que gotejava a cada minuto em que nos olhávamos, mas o silêncio absoluto, previamente instalado, dono de si e de todos, guardião das incertezas e dos tormentos, senhor das horas ancoradas em meio ao degelo irracional das idéias. Naquele canto, obrigado dia e noite ao convívio dos ruídos das almas e dos corpos, o silêncio primeiro, aquele que precedeu o verbo e gerou a escuridão, parecia indefeso, tão indefeso quanto o homem que lhe habitava, que lhe cobria as vergonhas com a decência mesquinha, que escrevia versos como quem fere a própria cria, como quem chorava sem razão sobre a loucura que tanto o aprazia.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

As fuças do dragão do tempo

Ouço outros tempos; ouço claramente um sax e algumas vozes domésticas. Ouço uma lágrima e um aceno, um escorregão e uma nota em falsete, um anúncio e um segredo (o segredo é um cochicho que é uma sensação agradável no ouvido, uma comichão que não pode ser nada além, pois, avós e irmãos e, quando muito, amigos ou um barco pouco seguro, sem rumo, que não suporta sexo a bordo). É possível, se nos agacharmos, ouvir-se o escuro, suas formas imprecisas e intactas, paredes fugidias e janelas caladas, mas espere um pouco, ouça, há um outro sentimento que escapa como seqüência de um arranjo improvisado, há um movimento que inspira cuidado, uma queda surda que finalmente mutila e resguarda o caos. Ouço um acorde que precipita uma porta fechada e passos apressados buscando a rua, um acorde que não acode e alguém que sempre chega destes tempos caudalosos que se derramam mesmo quando ausentes; tempos densos e afetuosos como um abraço. Ouço vozes que trazem notícias, boas antigas novas que dão conta de um mexerico qualquer ou uma esperança vindoura. Alertam sobre conquistas pífias e desaparecimentos contumazes – os meus desaparecidos, percebo, mantêm-se vigilantes e parecem espiar pelas frestas, as mesmas que fazem a poeira espiralar numa dança solar. Tento (quase sempre em vão) uma ponte que me livre do fosso e da possibilidade de uma arremetida pouco eficiente e, quem sabe, suicida. Tento uma conversa e o tempo tenta tentos a todo instante; tento uma paixão que machuque e que devolva a dor, tento roubar do inferno a dúvida de deus e estabelecer a incontinência e a ferocidade. Ouço a mesma dor que sentencia o náufrago e absolve o poeta, e quando a ouço resolvo que não sou uma poça, mas o mar. Ouço outros tempos; ouço os olhos aflitos que pestanejam borboletas num campo de um outro tempo ainda mais distante, olhos que lacrimejam as águas de um fim contido na execração do corpo. Ouço mãos que pedem não um perdão, mas excomunhão, não carinho, mas um porto; âncoras lançadas – corpo, escuridão, afazeres, sons, redenção. Outros tempos que ouço como um feto, uma carícia na pele, uma vontade de ficar e chamá-la para dançar; um cordão que prende ao módulo e nega a alma à órbita. Há uma árvore que vê e um homem que chora; há uma santa impregnada de substâncias pouco cristãs e muitas horas sem pressa; há crianças e tarefas; sonhos e livros; corredores que transportam mortos; há velhos e banhos de rio; palhaços e presépios e um desejo comum de olhar a lua. Ouço a outra banda escura e pressinto as fuças de um dragão pouco acostumado à dor de um súbito clarão.

Twittando

    follow me on Twitter