domingo, 17 de junho de 2012

Aprendiz

(deitar-me e ler-te, então)
Quero teu corpo como a um livro que eu escreva não com as palavras que nasçam em mim, mas com as súplicas dos anos em que deixamos de sonhar; talvez não queira escrevê-lo, mas lê-lo em segredo de criança, ouvir-lhe as entrelinhas sussurradas, desvendar-lhe os versos nas pontas dos meus dedos literatos e pacientemente participar de uma ode a dois na qual tu gemas versos de indelicadezas sensuais e meus ais pronunciem o desejo de mais uma página. Quero escrever-te como a um jornal diário dizendo-te além do amor todas as paixões em seções inesperadas, paixões escritas e inscritas na imensidão que olhas perdida quando a pontuação evidencia pausas e respirações, quando os parágrafos altercarem não ideias, mas a cidadela sitiada entre os montes da minha inspiração. Também preciso que me escrevas no vão retido tênue da alma-ave migratória que fazes voar todo mês, nave-mãe de sóis criados à sorte dos dizeres descabidos, poema em si despido de palavras exatas, incontida senhora das horas em que me amarras à sombra de tuas coxas poderosas e me sufoca com teus sufixos sulcados às minhas costas. Então o recuo ante o final; mais um capítulo ao tantra, mais um paraíso de algodão amarfanhado pelas mãos, mais um tremor espalhando letras pelo chão.

domingo, 3 de junho de 2012

A Tempestade (IV)

(a perspectiva do encantamento)
Preciso-me antes que desabem os céus que desenhei na parede suja dos fundos. Quero-me tão pleno antes que o desenho relampeje e se esvaia em alto-relevo tocando-me o plexo num desespero de perspectivas revoltas que lambem a atmosfera buscando-me o gosto, o sabor que talvez perdido macule o gotejar andino daquilo que se torna rio e me afoga mesmo antes que te respire as fragrâncias por entre as pernas. Sei-me em chamas maldizendo a solidão daquele fundo de tarde dizendo-me com todas as letras mortas que o amor é um grande desaforo, uma brincadeira sem retoques nas quais os brinquedos são frágeis e se arrebentam ao menor descuido. Chamo-te aos gritos e quem me vem acode ao copo, transborda-o. Escorro-me pela borda, saliva, seiva, chuva, lágrima em segredo desfeito no borrão da sombra e com o dorso das mãos sobre os olhos procuro visões que inventem outras estações que nos vistam nus.

Foto: Pietá nº 1 de Jan Saudek (1971) disponível aqui 

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