domingo, 22 de janeiro de 2012

Das muitas razões e de um adormecer

Depois volto para a mesma cena e te ajudo com o sutiã; acendo uma guimba marcada de batom e te ofereço mais uma vodka; espio o tempo pela janela baça e decido que tudo está cinza e perigoso; o chiado do pick-up diz que o disco terminou e que não haverá mais dança; você continua sentada na beira da cama mais confusa que cansada e até acha graça desse fim de mundo; o telefone chama às três da tarde e parece tarde para comprarmos flores e comida chinesa; melhor recomeçar.
Volto para o detalhe daquela cena: ajudá-la com o sutiã que não deixaste cair na hora certa; acender uma bagana melada de batom ao mesmo tempo em que tento pronunciar que tal mais uma Stolichnaya? Olhar a rua pela janela e decidir que não vou sair que prefiro esperar que decidas tirar a roupa e se oferecer lânguida e perfumada; cruzar o quarto devagar e colocar o braço do velho pick-up de volta na faixa At last e fazer fé que ouças os detalhes que só Etta sabe revelar; na revelação dançaremos nus na luz difusa das três da tarde; pedir flores e comida pelo telefone; tu se abres pouco depois. Outra vez, por favor.
A mesma cena. Tento tirar teu sutiã e você não deixa, chegamos até aqui e só me resta uma guimba no cinzeiro; nada de vodka e decido deixá-la bêbada de cachaça com mel, é só ter um pouco de paciência, cruzar o quarto e colocar o disco para tocar desde o início; imagino que sentiremos fome depois de nos amarmos e peço alguma coisa por telefone (flores também, para uma melhor impressão depois). Uma garrafa mais tarde e quase ao fim de tarde você se abre ao mesmo tempo em que adormece. Como sozinho olhando as flores (são vermelhas, brancas e amarelas, desabrochadas). Lá fora está nublado e decido não sair. Acendo a guimba marcada com o teu batom vermelho e puxo o lençol sobre o teu corpo alvo. Ouço a canção mais uma vez.

A música ao fundo...

 
(Post dedicado à Etta James)

domingo, 8 de janeiro de 2012

Pequena nota autobiográfica (ou, você ainda estava nua quando o leite derramou)

Aquela escuridão era comum, só não sabíamos a que horas se derramaria por cada canto, mas nem por isso prestávamos atenção; era ocorrido e pronto. Como o leite que fervia e tingia de branco a laje de tijolos enegrecida, como se acaso houvesse um tempo diferente em cada manhã e não bastasse a vigilância; era assim. Alguma coisa comum que não entristecia nem abalava o juízo, era apenas o dia-a-dia com a escuridão repentina.
O que digo é que não havia noite, havia um escuro que saltava sobre todos e tudo e tudo silenciava um pouco quando escurecido; depois a gritaria era a mesma, e durante, as velas tantas quanto acesas.
Você costumava cochilar, eu corria com os olhos bem abertos procurando ver o que ninguém via no escuro; não me escapava um palmo de realidade. Só depois de um tempo entendi que o escuro tinha outra fonte e determinava outras atuações, a realidade era mais que uma, os universos se entrecruzavam e os mapas astrais perdiam por completo o sentido; no meio do escuro tudo era outra coisa, outra coisa comum ao tato, às narinas e à percepção dos poros.
Foi numa destas incursões que te conheci melhor. Vi por dentro o que sonhavas e as borboletas de tão azuis nunca mais deixaram o céu nublado, e apesar do escuro profundo, as telas azulavam de tão alegre revoar; os pintores encontravam os matizes mais inesperados: azul borboleta feliz; azul querendo ficar mais claro; azul da cor da borboleta mais alegre e o resfolegar dos cavalinhos que chegavam com a chuva também era azul, azul cansado de tanto trotar.
Quando a luz voltava, os afazeres estavam todos por fazer e eu te fazia carinho, um carinho azul-claro de clareado outra vez. O leite derramado ninguém chorava; era o que tinha que ser e só porque ser outra coisa não seria mais leite derramado nem seu cheiro fervido de seis e pouco da manhã e pouca conversa já que tanta pressa agora e depois. Por isso a escuridão era um jeito de ser menino ou fazer de conta que você ainda estaria nua escondida sob os lençóis azuis do sonho e eu seria a ventania levando a roupa de cama, sorrindo no escuro tantos suspiros de amor açucarado.

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