sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Cortázar e Gabo um tanto nas (entre)linhas

"[...] vou me fazer de moderno no meu encontro com Deus"* (Sérgio Sampaio)

Alguém que anda por aí com aquele de quem lhe falei só pode mesmo causar alvoroço. Nem sempre é fácil entendê-lo o que, aliás, é tarefa para poucos; se muito, o que se pode tentar é alguma coisa que sirva como aceitação dos gestos e atitudes ou como parte de um repertório mais ou menos fantástico e que agrade os povos em vias de extinção. Se como pano de fundo há uma orquestra ou mesmo um DJ que busquem em suas evoluções uma antecipação da próxima manifestação divina, é certo que chova uma garoa fina sem comprometimento nenhum com o estado geral das ruas ou com a promessa de que não morreremos por conta dos pecados que tenhamos cometido ao longo do último dia. Se, por outro lado o palco nada sugerir além do que prevê sua conformidade de palco, o segredo de Diadorim estará para sempre seguro. É certo que depois de tanta dor amanheça um dia fora da semana, um dia que ainda não foi gerado pela dinâmica da rotação, um dia que ressuscita já que não aprendeu a matar.

Alguém que anda por aí com aquele de quem lhe falei foi antes denunciado pelo pai numa espécie de relação cristã que geraria algum lucro e certa poesia. Visto pela primeira vez, alguém que anda por aí – certamente orientado pelos gatos – já se insinuava feito uma sombra; daí que caminharem juntos pelos próximos anos de solidão não constituía nenhuma adivinhação. Os prêmios não seriam pagos até que a menina caísse extenuada depois de semanas brincando de amarelinha dentro daqueles dias ainda não inventados ou recebendo um a um, em sua pequena santidade, aqueles monstros insensatos. Tudo e mais um pouco lhe daria tempo bastante para visitar todas as prostitutas do bairro habitado pela distância dos sonhos de uma noite acordada. Na volta, alugaria uma casa – certamente tomada por generais inescrupulosos – e daria entrada nos papéis. Esperaria a noite de sábado para festejar a liberdade dos jovens e a detenção dos patriarcas. Na manhã seguinte, alguém que era deus talvez aparecesse trazendo dúzias daquelas pequenas dúvidas e notícias de um tempo que os jornais não publicariam jamais.

*trecho da letra "Leros, leros, boleros"

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Santificadas sejam as dúvidas e as esperanças

Algumas poucas sombras revelam ainda a luz chorosa, carcomida sobre os móveis, gotejante de alturas caladas em cujo cimo alguns anjos tramam a derrama de uma escuridão implacável.
Não acordei cedo; nem sei se acordei ou se transbordo sonhos além de mim e da exaustão. O fato é que as roupas estão jogadas por todos os cantos; as suas também. Tem-se a impressão de que foi travado um combate irascível cujo intento maior ou único fora o êxtase da cópula. Vencedores e vencidos? Não parece fazer a menor diferença já que você está ao meu lado tão combalida quanto eu e é quando me esforço para entender a situação; chove muito e percebo que sequer sei se tanto escuro tem razões naturais - noite? -, ou se obra de algum desgraçado encarapitado no meu telhado que cisma em apagar meu sol.
Aquelas poucas sombras indicam alguma coisa, mas como já acontecera antes, talvez não seja nada além da minha frustração se derramando sobre todos os meus pertences e mesmo sobre tudo o que não me pertença. No quadro, não me pertencem o vestido estampado, nem a lingerie. Não vejo sua bolsa, embora me recorde de suas mãos nervosas tateando a escuridão à sua procura e depois de um tempo (que então me pareceu eterno) tocar-me delicadamente cobrindo-me de prevenções, texturas e sabores.
As sombras são mesmo aterradoras. Gotejam securas e mesmo chovendo gotejam desertos, gotejam pedaços de outras vidas que por acaso se deitaram ali, talvez sob as mesmas circunstâncias, talvez imaginando alguma tolice que me associasse às fortunas, ou a um desempenho fora do comum. Talvez tenham acordado antes de mim e ido embora tão logo tenham notado as sombras, o resto de vodka, o cheiro que a pobreza deixa nas coisas, o punho esgarçado da camisa e o suor misturado a outras secreções tão mais virtuosas.
Você não foi embora. Dorme profundamente ou está profundamente ausente, presa a um sonho alcoólico que a faz vergar sobre o vaso e desamparar-se em tantos prazeres transformados. Não, não é mais sonho, você realmente está aí debruçada sobre o vaso, abraçada a ele como ainda a pouco se agarrava a mim. As sombras espiam ao mesmo tempo em que deslizam pelas paredes como íncubos oportunistas, vigilantes, prontos para desfazer a cena e editá-la sob formas de uma coloração demasiada - um take mais ou menos como em Almodóvar - cuja silhueta te apresente nua, muito branca, olheiras terrivelmente tingidas em azul-cobalto - se bem que sou péssimo na identificação das cores -, os cabelos molhados não sei se da das goteiras que imagino ou do banho que talvez eu tenha lhe dado. É possível ver os golfinhos que brincam no seu tornozelo esquerdo e girando um pouco o quadro as três estrelas que adornam o cume da sua bunda rija, redonda, agora acomodada à cerâmica fria. Os íncubos estão próximos e também a hora de acordar; não sei se durmo, ou se acordado pronto para preparar um café extra-forte, se morto imaginando um deserto gotejando em meu plexo e um sol violentado pelo pulha no telhado.
Devo disputá-la com os íncubos. Devo fazer valer os meus domínios e afugentá-los; basta que escureça um pouco mais, que o triste patife que passeia na cobertura fulmine de uma vez por todas qualquer vaga-lume que mantenha em torno de si estas grandezas suspensas.
Estou deitado aguardando que o escuro me invada os olhos e carregue para o fundo a lágrima que então ilumina o vão desta loucura. Neste vão você vira para o outro lado oferecendo-me toda a porção voluptuosa sobre a qual três estrelas me servem de guia e sem hesitar a cubro com meu corpo procurando a opulência dos teus caminhos, mas o que está oculto e grita das alturas são os anjos que tramam a derrama e já não é um grito que clama pela escuridão, mas uma gargalhada que destroça a madrugada e faz amanhecer impiedosamente. Não há quem furte o sol, não há mais nenhuma mulher que me ofereça estrelas, apenas a santificação de um quadro que pode ser dúvida ou esperança e que se pode pendurar em qualquer parede ou vender-se feito um folhetim editado às pressas, sem que ninguém percebesse.

sábado, 3 de janeiro de 2009

ALÉM DAS VIDRAÇAS, ADIVINHAÇÕES

Certamente, não se descortinam os edifícios à minha frente, pois concretos. Não posso tocá-los e nem afastá-los um pouco para o lado entrevendo teus passos conspirados pela vontade de quem narra; não posso sequer fazer-me ouvir tal a distância entre a realidade e as linhas que se multiplicam nas adivinhações do escritor. Estás do outro lado, aonde não te alcanço, aonde não posso lançar-te as cordas e nem a sorte; fixa às páginas donde arrancá-la corromperia a própria compreensão da trama. Estás quase levitando enquanto os edifícios medonhos e cinzas se esparramam no meu parco horizonte. Faz frio dentro da minha inquietude, mesmo que o sol desabe a pino. Faz frio porque me parece mais dramático. Atrás do vidro a incompreensão do sol agarrado à rua cega-me tão duramente que te esqueço a pique nas marés de outras avenidas; barcaças e barcarolas se fingem de ti, mas astuto não embarco, e por não fazer o papel principal lembro-me, além das vidraças que não te ouvem, dentro das roupas que não te vestem, ouvindo as músicas que teu corpo não dança mesmo em noites frias e depois de tantas tequilas, outra vez de ti. Lembro-me de buscar as trancas e deixar atrás de mim a porta escancarada sem pensar em mais nada que não fosses tu, mas as entrelinhas da narrativa crucificam-me à vidraça, à luz filtrada de um sol abobalhado, à velocidade de uma fuga em si bemol. Tu, então, não és mais nada além das letras que escrevo e leio. Que escrevo e leio para sonhar. Para sonhar com as adivinhações além dos edifícios. Além dos edifícios que não me deixam olhar-te. Olhar-te, além da visão; ver-te além das palavras.

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