terça-feira, 21 de outubro de 2008

Arremetida


Espero que decidas antes. É que antes ainda agonizo um instante e antes não é só um punhado de possibilidades fora do tempo ou dentro das expectativas que todos consideram normais, antes é a redenção, são as mãos que tiram a corda do pescoço ou abrem as janelas sempre que a escuridão asfixia com as visões que só ela revela. Antes é a trama, a interpretação absurda de um mapa astral que não considera os caminhos de outros sóis e nem os passos rabiscados no escuro.
Não que eu tenha pressa, mas antes a solidão nem é tão aguda e nem me rouba os fins de tarde que avermelham os minutos sempre que fico pra depois. Tenho mesmo coisas de dizer, fazer, sonhar, talvez visite alguns amigos, mesmo que não percebam, mesmo que não se incomodem com o cheiro do cigarro ou com a falta de assunto, sim porque não conversamos sobre futilidades, é costume atravessarmos as madrugadas recriando o encontro de outros dias ou o modo de vida de um personagem que consideramos deslocado, colorindo os contornos que deixamos uns nos outros.
Outro dia mesmo, você foi assoviar na janela e, de repente, preocupada com o que achariam os vizinhos desenhou uma ave sem vôo no espaço das suas mãos e intercedi dizendo que a melodia era tão bonita, perguntei se era Schulman você disse que não que ouvira alguém na rua – uma melodia que se fixa nos poros nos modos na boca, uma melodia que insiste quase aflita em repetir-se nos seus lábios que dança na sua língua e pensei que talvez quem a assoviasse na rua fosse Schulman em carne e osso, mesmo não sendo ele o compositor, passeando pela República que foi onde imaginei que alguém assoviasse uma melodia tão bonita.
Depois tem ainda as contas, números dívidas mais uma cerveja fiado mais um cigarro aceso e a solidão que me empurra para dentro de uma perspectiva aquática e o temor do afogamento diário, as borbulhas, o café, tanta roupa amarrotada, lençóis ainda sujos da última semana, obra no vizinho, poeira e barulho e minha assinatura perdida, folhas e mais folhas lidas sabe-se lá por quem. Espero que decidas logo. E logo não são apenas estes olhares complacentes ou os acenos que dizem até daqui a pouco querendo mesmo afastar a cena pra fora do contexto, reescrevê-la com as tintas de uma novela nem tão piegas, mesmo porque depois me apresso com a idéia de nunca mais tocar-lhe o sexo nem a fronte nas febres nem as mãos nas despedidas nem o rosto úmido talvez do beijo, depois me impaciento com o táxi que chamei e nunca chega e quando chega mando tudo pro inferno e corro fechar a persiana na esperança que não me ouçam, mais ou menos como uma criança que fecha os olhos na esperança de que não a vejam. Decidas antes da hora nunca marcada, antes da vida que atiro de tantos andares numa cusparada mais blasfema do que propriamente bêbada, antes que eu parta as cartas e decida por ti, decida que os gritos não eram teus, tampouco a agonia de ver-me desajeitada sob teu corpo seria tua. Teu seria o sorriso meio torto emoldurado na parede lateral, aquela que tanto desejáramos pintar emprestar aos amigos como um muro, mas resolvemos mantê-la intocada exceto pelo retrato que hoje está torto na parede – e penso que teria sido tão bom derrubá-la, abrir mais a sala sobre a sala do vizinho em obras, sobre a vida de uma família em obras comendo poeira e pó de mármore, um sol inteiro na sala e não apenas esta réstia que junto comigo espera que decidas logo. Antes que eu desça as escadas e arremeta mais uma vez.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

CÍRCULOS

Então você volta. Você volta sempre. Volta com o rabo entre as pernas na esperança de que eu abra as minhas e me desampare inteira agarrada às cordas que me lanças. Tem sido assim desde sempre e sempre é tanto tempo que a impressão que tenho é a de que sempre andamos juntos e que isso tudo entre nós é quase sujo e incestuoso. Fico até com vergonha quando você volta e me convence; depois quando me lavo, sinto que com a água não é você quem escorre, mas eu mesma. Jurei que não aconteceria outra vez, jurei que sua expressão de anjo não me convenceria e que daquela vez não terminaríamos pelos cantos meio nus meio vestidos, cambaleando um sobre o outro e de olho na porta já que nunca se sabe. Daquela vez você voltaria da porta e eu não me envergonharia depois. Daquela vez eu te olharia de longe, tão longe que não conseguiria reconhecê-lo e então talvez eu me apaixonasse por você e você seria alguém totalmente novo, um punhado de segredos que eu não decifraria, pois nunca te conheceria assim. Quando você estivesse distante, bem distante, eu gritaria o teu nome que sequer saberia ao certo, mas gritaria com a agonia de quem vê alguém que talvez fosse sua cara-metade sumindo dentro de uma rua tão imensa quanto as mentiras que nos contamos todos os dias e gritaria para além da sua audição, gritaria para um homem que bem poderia levar-me à loucura escorada nas paredes, dependurada nessa aventura suja, meio despida meio vestida, meio sem saber o que seria certo e errado e em todo caso fazê-lo, porque não fazê-lo me levaria de volta a você.
(Foto: Tuta, veja em olhares)

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