AS GUERRAS NOSSAS DE CADA DIA
Depois de tantas horas me enfio pelas ruas – caras tristes por entre espinheiros cochicham entre si fuxicos chorosos (se bem que a garoa e a lágrima disfarcem o inevitável) - e sorrio poucos uivos para uma lua amarelenta pousada entre escuros de rara revelação.
Outras ruas assomam à minha vigilância; arroubos de cores e profundidades diversas estendem-me mãos calosas de uma obra irretocável – hora de ainda não chegar.
Anjos espiam por entre os mesmos espinheiros como se ali repousassem abraçados, quem sabe indecisos ou precisamente encharcados de um vôo temporal. Quase do mesmo modo estiram-se à passagem dos homens sob rajadas de um hálito divinal que não expele outra ameaça a não ser aquela que te faz vergar sob o peso dos escombros que um dia chamaste corpo ou combalidos pela iniciativa do verbo que, em princípio, jazia nas páginas de um relicário. Rezam, enquanto folheamos instruções e ouvimos um blues que é pura perdição. Mantendo as aparências pensas em um sujeito qualquer em qualquer um desses sonhos Tarantino violentando ninfas indefesas que por ventura borboleteiem rosas próximas às minhas mãos.
Paro. Percebo que a rua é mesmo esta e que você realmente me acena e chora e que levo um fuzil às costas e que o pelotão todo acena para tantas outras mulheres em suas varandas que bem podem ser um cais ou uma estação e que os lenços brancos como pombas agarrassem-se às mãos como representação de uma possibilidade a mais. Mais adiante despenco por um barranco desenhado especialmente para mim e quando finalmente encontro outra rua me levanto sem saber que as feridas foram lavadas na água do teu banho e que o silêncio no qual me afundo é outra vez um salto espectral às janelas onde não há mais nenhum amanhecer; apenas a rua que é um caminho em qualquer mês por onde sigo cego no encalço de outras mentiras. Sempre extensa, nela todos se cumprimentam, trocam preocupações, abrem seus corações, profanam memórias, recolhem seus jornais e se enfurnam na brevidade dos álibis. Quando chego ao outro lado, olho a rua que caminhei, olho seus sobrados desabados que para sempre guardam suas canções, olho suas crianças que brincam de ilusões e olho você que me olha tão aflita como se do fundo de nossas vidas chegassem notícias de uma lua amarelenta pousada entre escuros de rara revelação.
*Ilustração de Lima de Freitas para a edição polonesa de A Marcha (1956) de Afonso Schmidt