terça-feira, 30 de setembro de 2008

AS GUERRAS NOSSAS DE CADA DIA

Depois de tantas horas me enfio pelas ruas – caras tristes por entre espinheiros cochicham entre si fuxicos chorosos (se bem que a garoa e a lágrima disfarcem o inevitável) - e sorrio poucos uivos para uma lua amarelenta pousada entre escuros de rara revelação.

Outras ruas assomam à minha vigilância; arroubos de cores e profundidades diversas estendem-me mãos calosas de uma obra irretocável – hora de ainda não chegar.

Anjos espiam por entre os mesmos espinheiros como se ali repousassem abraçados, quem sabe indecisos ou precisamente encharcados de um vôo temporal. Quase do mesmo modo estiram-se à passagem dos homens sob rajadas de um hálito divinal que não expele outra ameaça a não ser aquela que te faz vergar sob o peso dos escombros que um dia chamaste corpo ou combalidos pela iniciativa do verbo que, em princípio, jazia nas páginas de um relicário. Rezam, enquanto folheamos instruções e ouvimos um blues que é pura perdição. Mantendo as aparências pensas em um sujeito qualquer em qualquer um desses sonhos Tarantino violentando ninfas indefesas que por ventura borboleteiem rosas próximas às minhas mãos.

Paro. Percebo que a rua é mesmo esta e que você realmente me acena e chora e que levo um fuzil às costas e que o pelotão todo acena para tantas outras mulheres em suas varandas que bem podem ser um cais ou uma estação e que os lenços brancos como pombas agarrassem-se às mãos como representação de uma possibilidade a mais. Mais adiante despenco por um barranco desenhado especialmente para mim e quando finalmente encontro outra rua me levanto sem saber que as feridas foram lavadas na água do teu banho e que o silêncio no qual me afundo é outra vez um salto espectral às janelas onde não há mais nenhum amanhecer; apenas a rua que é um caminho em qualquer mês por onde sigo cego no encalço de outras mentiras. Sempre extensa, nela todos se cumprimentam, trocam preocupações, abrem seus corações, profanam memórias, recolhem seus jornais e se enfurnam na brevidade dos álibis. Quando chego ao outro lado, olho a rua que caminhei, olho seus sobrados desabados que para sempre guardam suas canções, olho suas crianças que brincam de ilusões e olho você que me olha tão aflita como se do fundo de nossas vidas chegassem notícias de uma lua amarelenta pousada entre escuros de rara revelação.

*Ilustração de Lima de Freitas para a edição polonesa de A Marcha (1956) de Afonso Schmidt

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Das objeções, dos objetos e da inconsciência

A PRIMEIRA cadeira que vi estava vazia, não que outra estivesse ocupada, mas a primeira que vi estava especialmente vazia como se ali nunca ninguém sentara antes.
Vazia de corpo e alma, tão vazia que sequer lembrava uma cadeira e, embora eu a reconhecesse como tal, não me inspirava sensações que, comumente, as cadeiras inspiram. Não quis me sentar e nem quis circundá-la como a uma partner que se toca de leve na cintura dando vida a dança, não uma dança qualquer, mas destas danças que se dançam com cadeiras vazias e que, então, nem são mais vazias, pois preenchidas pela dança de alguém. Não quis nada com a cadeira que se contentava em ser um modelo morto escorada à mesa que nem era mesa, como de fato são as mesas quando estão próximas às cadeiras, pois a cadeira de tão vazia distanciava-se daquilo que, embora mesa, não o sabia. Não quis saber da cadeira que não sabia ser cadeira e nem porque moldada como tal, estranhamente feliz na sua incompreensão de cadeira vazia.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

A manhã e o desencantamento


Antes de as cores
reverberarem caladas, correndo confusas contra o pano de fundo que a rotação secreta, ouvi do escuro da noite em branco que a explosão não deixaria vivos nem avisos e ouvi dos vivos que a mácula não seria uma anedota sem sorrisos e nem o fim do silêncio. Apenas a luz borrifada na face dos poucos falsos viventes, poucos viventes indecisos e desavisados de si, comprometidos com a dor lancinante de anunciar o desenlace com a trama.
Não haveria um suspiro derradeiro e nem um olhar de soslaio, compadecido ou ao mesmo tempo intrigado, não haveria um novelo que eu desfiasse e me levasse de volta antes de as cores reverberarem caladas, confusas, contra um fundo tão imenso e sem você, quando tudo fica meio cinza e não que as cores talvez porque misturadas demais não se dissolvam; talvez. E depois de cinza tudo amanhece sem graça sem arruaça de sol bulindo no meio-escuro espreguiçando varandas orvalhadas.
Mais um pouco e os primeiros ruídos clareados irrompem dias feriados e flagram teu rosto inda adormecido sobre meu peito, estamos nus e ainda sonhamos colorido já tão próximos ao desencantamento da manhã. Então continuar assim sem ligar sem buscar sentido nas mãos que esmurram a porta quebrando a corrente física, sobressaltando nossos corpos e impondo a dormência de um cinza absoluto e ensurdecedor, e não tem mesmo sentido algum alguma coisa de fora de outro lugar no mundo apossar-se da hora em que tudo ficou decidido tatuado e colorido dentro da madrugada chegar dizendo que é hora como se nada antes importasse ou fosse a razão de estarmos ali como se as translações ao redor dos nossos desejos nunca buscassem um sol ou mesmo um motivo que nos devolvesse a fuga para nunca e nunca mais cinza do que a mistura das luzes noturnas atiradas contra a janela de cortinas soltas que ajudam a congelar a gotícula de suor que escorre em seu dorso e as mãos que nada têm a não ser o remorso de bater à porta.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Ao meio-dia de um quarto trancado


Não seriam sequer as descrenças que a carregariam por entre estas almas tristes, mas uma atitude menos enfática que não mantivesse em riste a pronúncia de um gesto. O limbo pareceria um mistério criando expectativas físicas de que, finalmente, tocar-lhe-iam as vísceras em cumprimento à fé, mas tu não entenderias tais intenções e sairias serpenteando em procissão. Os olhares, mais vazados do que vivos, tragando-lhe os desejos recortados, os sonhos e as contradições, fincariam repulsas e revelações mesmo que na fixidez de uma parede em branco. Ainda longínqua a ponto de não definir contornos sentir perfumes perceber texturas, gritar-lhe-iam impropérios e sentenças dos quais não te livrarias; em verdade os gemidos do mundo gritados por todos os cantos embalariam teu berço, velariam teu sono, fechariam atrás de si as portas do teu convento deixando-a por conta dos afagos que pela vida procuraste. Vinda assim, de dentro da ilusão amarelenta dos véus que despirás quero que cresças junto às cercas e com o tempo quero que as tome e avance pelas terras e surpreenda outros mundos com teus modos de santa coisa nenhuma que engana quem vê assim um olhar de longe e que embora perdido, te olha tão fundo que rouba respiração, coragem, roupas e quando te dás conta já é o fim, hora de procurar respostas e descobrir-se só e sem posses. O que devoto nesta imensidão que chamo prazer, são poemas que bramo em teu altar; acredite os declamo como epístolas insensatas que norteiam minhas misérias e semeiam em ti este espaço todo de lonjuras tantas e tanto de nós que cubro qualquer possibilidade de reflexo, cubro as águas com o pranto indelicado que verto desmesurado, todos os espelhos que não te vêem ao meu lado, cubro poças com as sombras que voam e fecho todos os olhos dizendo-te por todos os dias que não restariam palavras que traduzissem, então, a loucura de caminhar sozinho e recolher os sóis do teu caminho ao meio dia de um quarto trancado; dizendo-te que te levaria no colo, não pelas chamas ou pela devassidão, mas para não cansar-te a sorte de caminhar depois as trilhas dos meus passos; dizendo-te que te daria a mão, que te arrancaria das cacimbas e dos precipícios, que te salvaria dos mortos, mas tu nunca ouviste, preferiste a turba carregando-a como a uma deusa que fosse corpo e melancolia. Disse um dia que tu não compreenderias quando te levassem num dossel de encantamento até o fundo de cada alma sequiosa e lá te abandonassem como a este amor que nos prometemos um dia.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Rota de colisão

  Acredito que fui eu quem te olhou na distância de uma dor pontiaguda similar à vastidão de uma legião de meteoros sem rumo que se abate contra um planeta qualquer nos confins de um espaço embriagado, e já que a doçura dos teus olhos fulminantes fez um dia disparar um instante de redenção e tão poucas causas de alegria, sim fui eu. Quem ficou mesmo perdido sob um sol paulistano 35 graus e tem quem não acredite que os corredores intermináveis de prédios para todos os lados e a algazarra térmica do piche preto movediço provoquem um calor medonho que me prostra e embaralha os rumos dos meus olhos ensolarados e você num rasante sem prumo cravando os punhos na decisão de enxotar-me e eu novamente atônito escondido e desejando que o dia não mais se prolongue, pelo menos não a esse ponto ou nessa direção precipitado e agarrado à chance de rebelar-me no mesmo segundo em que resolves despir-se para uma distância transparente de sóis aflitos e enciumados, e sim. É mesmo um dia qualquer de ilusões chorosas e desculpas intermináveis ou sou mesmo eu sem sentido, mas. Mesmo assim se perfilam e caminham ao meu lado e posso até tocá-las, oferecê-las como mais um desperdício no balcão ou procurar o chão e rolar para o outro lado aceitando que nunca mais anoitecerá aqui fora, que iremos embora devagar e divagando enquanto os meteoros convergem e destroçam outros momentos fugazes dentro dos quais sorriremos um dia ainda atracado no futuro na movimentação das dúvidas ou das tuas ancas caprichosas, e sim sou eu. Em rota de colisão quem olha para todos os lados e do bolso retira um papel amassado com letras sentidas em vermelho tão perto do peito e que dizem tolices tão dentro de você que se materializam e digitam um código qualquer que te faz surgir bem ali, mas. De qualquer forma (in)vestida de sombras é em ti que repousarei meu corpo cansado de tanto seguir por vias mal iluminadas onde não distingo a natureza da maquiagem nem os motivos da gargalhada.
(foto "Paz" de P. Manzano)

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